quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Não matem os professores!


Na relação que tive ao longo dos anos com os meus alunos, o que mais me marcou foi a força de vontade que aqueles, com menos possibilidades económicas ou com necessidades educativas especiais, me revelaram. Quando tudo parecia empurrá-los para caminhos obscuros ou isolamento social, estes adolescentes arregaçaram as mangas e deram luta à vida e passaram-me a mensagem "Não desista de nós!". 
Esta aprendizagem fortaleceu-me e, preto no branco, gravou-se no meu subconsciente. Gravou-se tão vincadamente que todos os anos vem à superfície e permite-me dar a mão a mais alguns e outros tantos. E como gosto!
Todos os dias lemos artigos relacionados com a educação... todos eles repetindo o mesmo e batendo na mesma tecla... "os miúdos dos nossos dias não têm educação, os pais não têm tempo para eles"! Não me vou manifestar relativamente a este aspeto pois está mais do que gasto e não pretendo ser mais uma voz a atribuir culpas sempre aos mesmos. O que pretendo é mostrar que nós professores temos um papel fundamental na sociedade atual, apesar de sermos espezinhados por todos, até por aqueles a quem devemos dar a mão. 
Os jovens encontram-se em crise... uma crise de valores, uma crise de identidade alicerçada em terrenos movediços devido ao encharcamento provocado pelos meios de comunicação, pela tecnologia, pelo "diz que disse" lá de casa, por todos nós que seguimos tendências e discutimos depois o caminho que temos vindo a percorrer nas últimas décadas. Não nos esqueçamos que os jovens não são surdos e que, se não tiverem um tradutor fidedigno que lhes passe a informação sem ruído de fundo, provavelmente tirarão conclusões erradas e precipitadas sobre o que é discutido. Assim acontece quando ouvem adultos dizer "Os professores regalam-se!", tal como eu já ouvi mesmo ao meu lado...
Há cerca de quatro anos assisti a uma entrevista do neurocientista António Damásio sobre o funcionamento do nosso cérebro. Este senhor é um espanto! Possuidor de uma capacidade comunicativa extraordinária, explicou que a insensibilidade dos nossos jovens é provocada pela interrupção da transmissão da informação. Como? Muito simples... suponhamos que o meu filho está a ver uma notícia sobre violência entre menores e eu, com receio que ele se assuste, mudo de canal. O que aconteceu entretanto no cérebro do meu filho? Um erro! Apenas uma parte da informação foi transmitida e, como consequência da mudança de canal, não decorreu o tempo suficiente para que fosse devidamente processada pelo seu cérebro. Qual o resultado? O meu filho não conseguiu analisar toda a informação de modo a entender que este tipo de comportamento é errado e não o assimilará como tal. Consequentemente, não achará negativo quando o voltar a presenciar ou sequer terá remorsos se o vier a manifestar. Como se poderão evitar estas interrupções na passagem da informação? Já que não as conseguimos evitar, deixemos passar a informação e, só então, temos o dever de explicar que aquele comportamento é errado e, como tudo na vida, implica consequências para cada um dos intervenientes. Como professores sejamos esses tradutores!... Ajudemos os nossos alunos a distinguir o bem do mal.
Muitos alunos são também possuidores de uma grande falta de autoestima... são os primeiros a dizer que não valem nada e porquê? Dizem eles - "Eu sei lá! Eu não sei nada...". Não aprecio este tipo de atitude e, como tal, batalho para lhes mostrar que nada, nem ninguém, tem o direito de dizer-lhes que não são capazes. Aprendi que, quando motivados, os jovens correspondem e são capazes de nos surpreender. Sejamos, então, um pouco psicólogos, um pouco amigos de viagem, por muito breve que esta seja. Sejamos um pouco família, sejamos um pouco do que quer que seja...
Agora parece-vos fácil ser professor?

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O que és? Sou professora!




Sou feliz, muito feliz! De que serve comparar a minha felicidade à dos outros se todos nós seguimos diferentes caminhos que, de um modo ou de outro, nos brinda com momentos inesquecíveis que guardamos no baú das mais queridas recordações, e a minha felicidade é unicamente da minha responsabilidade, não depende de mais ninguém?
Sou feliz como pessoa, como mulher, como mãe. Sinto-me apoderada pela sensação de estar preenchida por algo que não sei descrever… sinto o peito a transbordar. A razão? A minha família que sempre me apoiou, o meu marido, companheiro e amigo, os amigos que mesmo ausentes estão sempre presentes e os dois grandes amores da minha vida, os meus maiores projetos, os meus filhos.
Aprendi que nada é mais poderoso e valioso do que aquilo que me faz sentir feliz, tudo o resto é de alguma forma dispensável.
Sou professora e adoro sê-lo, apesar de ser mais uma entre milhares a lutar por um lugar ao Sol.
Como professora contratada, todos os anos me sujeitava, e ainda o faço, aos famigerados concursos para professores. São dias desgastantes em que colocamos o nosso futuro em simples códigos de escolas, concelhos ou zonas, de norte a sul do país, por ordem decrescente de preferências. É um tormento pois temos que aguardar pela colocação e não sabemos como será a nossa vida no ano seguinte. Terei um horário completo ou incompleto? Ficarei longe de casa? Como será com os meus filhos? Estas são as perguntas que se destacam pois a seguir vêm todas aquelas inerentes aos gastos e despesas. Todos os anos são diferentes, nesta perspectiva não se sofre de tédio, mas sofre-se de ansiedade e incerteza pelos dias que virão.
Depois de se ter investido tantos anos na nossa formação, um punhado de senhores engravatados pousaram algures pela capital e decidiram questionar a qualidade dos professores. Pois eu também questiono a deles! Lembro-me de colegas que sentiram o reacender da chama da esperança quando um professor, como nós, ocupou o cargo de Ministro da Educação… coitados de todos nós! Nunca fomos tão maltratados! Até fomos sujeitos a exames duvidosos… eu cá penso que este senhor tem uma obsessão qualquer por exames, por que será? E como avaliar o trabalho de um professor se somos e fazemos muito para além do que ele pensa ou julga?
Passámos a ser a escumalha da sociedade, fomos quase reduzidos a pó, mas eu sou resistente como outros tantos. E porquê? Porque adoro o que faço, sou um bichinho da sala de aula, adoro contribuir para a formação dos meus alunos como indivíduos, adoro as suas risadas às quais retribuo com caretas… adoro dar cambalhotas e fazer piruetas mentais para adequar diferentes estratégias que se tornem produtivas e os ajude a alcançar o seu sucesso. Sou doida? Se calhar! Se não o fosse já teria desistido.
Já passei por muitas escolas, muitas terras e tive muitos alunos. E posso garantir-vos que me lembro de todos. É engraçado que até sei o nome de alguns. Um dos que mais me marcou foi o R., um rapaz que morava no concelho mais pobre do país e trabalhava no campo com os seus pais, antes de ir para a escola. Era um aluno excelente. Estava muito atento nas aulas, fazia os trabalhos de casa no autocarro e pouco mais estudava pois os labores agrícolas não o permitiam. Quando nos despedimos, no final do ano letivo, pedi-lhe que me prometesse que iria continuar no bom caminho e ele, sorridente e seguro, assegurou-me que iria para a universidade pois não queria ter uma vida como a dos seus pais - “Não quero acabar como eles!”. O R. tinha uma vida muito dura. Levantava-se muito cedo para ajudar os pais no campo. Chegava à escola exausto e com as unhas negras da terra que remexera com as próprias mãos.
Numa outra escola, de um concelho vizinho ao meu, marcou-me um outro rapaz que tive como aluno no ensino recorrente. Sofria de uma doença degenerativa que se traduzia numa cegueira progressiva. Estava quase cego, apenas vislumbrava sombras e fazia uso de uma lupa para ler os testes que lhe fazia à mão pois as ampliações eram inúteis. 
As aulas já tinham iniciado, estávamos praticamente a meio do primeiro período, quando a coordenadora me expôs a situação deste aluno que iria iniciar, nessa mesma altura, as aulas. Explicou-me que tinha muitas dificuldades de integração devido ao problema de saúde de que sofria e que deveria controlar a sua assiduidade.
Lembro-me de me ter cruzado com ele antes de entrar na escola para dar aulas à turma que seria também a sua… “És o R., não és? Para onde vais? A escola fica para este lado, vem comigo!”. Pelo caminho apresentei-me e expliquei como funcionavam as aulas. Quando a campainha tocou, dirigi-me à sala com a dúvida de tê-lo lá, à espera… mas lá estava ele. Nessa aula não dei qualquer matéria, falámos sobre as nossas vidas, as dificuldades por que todos passávamos e o que pretendíamos fazer para superá-las… quebrou-se o gelo e criaram-se laços. A integração do R. nunca foi um problema ao longo do ano letivo, tornara-se o melhor aluno da turma e ganhara asas para voar…
Por eles, alunos, sou uma apaixonada pelo ensino e, apesar de a minha felicidade não depender diretamente da escola, sinto um vazio enorme quando não posso entrar numa sala de aulas. Fiz um percurso como professora que me enriqueceu tremendamente como profissional mas sobretudo como pessoa. Ao longo dos anos ajudei a formar mas também aprendi muito com todos os meus alunos. Marquei e fui marcada. Ser professor não é apenas dar mas também receber!