quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O meu Gigante


A minha existência tem sido brindada por experiências que, por um lado, me tornaram mais forte, e por outro lado, me permitiram ter uma visão da vida muito diferente daquela que sempre se idealiza ter. Se olhar para o passado, algo que faço com muita frequência, consigo interligar muitos acontecimentos como se de peças de um puzzle se tratassem - acontecimentos distantes no tempo mas detonadores de outros que se revelam cronologicamente mais tarde. 
Tinha apenas dez anos quando o meu avô Armando faleceu vítima de cancro no estômago. Assisti ao desenrolar da doença, acompanhei a minha avó Aida nos internamentos da sua alma gémea e pude despedir-me dele com um último beijo. Eu adorava o meu avô - éramos cúmplices - ele protegia-me e mimava-me e eu retribuía os afetos. Fui a primeira neta e, apesar de não fazer distinções entre os seus descendentes mais novos, tinha uma relação diferente com a neta mais velha. 
Sempre me senti privilegiada por ter partilhado mais tempo de vida com o meu avô pois aprendi muito com aquele gigante com coração de ouro. Imagino que tivesse os seus defeitos, como comum mortal, mas preservo a imagem da pessoa mais bondosa e carinhosa que conheci na minha vida. Era muito justo e amigo do seu amigo, até de desconhecidos. Recordo-me que o palacete, onde vivemos, era rodeado por jardins e as suas traseiras ficavam viradas para o campo de futebol do clube da Terra. Quando havia jogos, muitos procuravam o meu avô para poderem assistir aos jogos nos nossos jardins e o meu avô abria os portões e lá os deixava entrar. Eu acompanhava-o sempre e lembro-me de certo dia a procura ter sido maior do que era habitual. A invasão dos jardins do palacete era eminente e, por isso, os portões foram encerrados. Entre a multidão vislumbrei um senhor, de olhar triste e muito calado, e tive vontade de o fazer feliz, nem que fosse apenas pelo tempo de assistir a um jogo de futebol. Agarrei a mão do meu avô, apontei na direção do desconhecido e sussurrei um pedido ao seu ouvido. O avô sorriu para a neta e satisfez o seu desejo. O meu coração encheu-se de alegria e não foi o único.
Mais tarde, já os meus pais viviam num apartamento, muitas foram as vezes que troquei passeios com os meus progenitores para passar esse tempo com os meus avós e coitados se, a meio da noite, me lembrava de ir dormir ao palacete. Durante a semana, já a frequentar a escola primária, ia ter com o meu avô à sua oficina - ah, o meu gigante amoroso era mecânico de automóveis - para almoçar. Aos fins de semana passeávamos de mãos dadas e as mais ternas recordações do Natal têm a sua presença.
A perda do meu avô foi muito dolorosa. Ainda era muito nova para entender o significado da morte. Nessa mesma noite, na cama e com lágrimas a brotar dos olhos, pedi ao meu avô para ser o meu anjo da guarda. Assim "estaremos sempre juntos" e acrescentei "mas não te mostres porque tenho medo de fantasmas!".
Apesar de ter conhecimento da doença do meu avô querido, não me imaginava sem ele. Os últimos meses de vida foram marcados por brincadeiras, que guardo como momentos preciosos, e conversas que me marcaram e desencadeariam acontecimentos futuros. Numa dessas conversas, ouvi a confidência do meu gigante - "Sabes, Ticha, não irei ver-te a casar..." 
Fui ao funeral do meu avô, triste como a noite pois o meu gigante partira mas com um grande orgulho pois o seu corpo fora transportado num carro dos Bombeiros - ele também fora bombeiro voluntário - e pelo mar de pessoas que se quiseram despedir dele. Sinto tanto a tua falta!


     

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

De que são feitos os sonhos...


Sou e serei a eterna sonhadora... Apesar do conteúdo dos meus sonhos se ter metamorfoseado ao longo do tempo, nunca perdi a vontade de sonhar e, muito menos, de os concretizar.
Não me recordo dos sonhos que tinha em criança mas, certamente, seriam marcados pela ingenuidade e fantasia com que vivi a minha meninice. A adolescente que fui também se manifestou no modo como sonhei... Recordo que "sonhava acordada", embalada pelas melodias que se ouviam na altura e imaginava o meu futuro ao lado de alguém que me faria feliz. Ainda desconhecedora do que viria, imaginava-me a ajudar os outros, a combater injustiças e o preconceito. Lutaria pelas causas dos desprotegidos, daqueles que padeciam da insensibilidade da sociedade que os alienava. Queria e sonhava poder ajudar os outros.
Entretanto, cresci e licenciei-me em geologia. Lá no fundo do meu ser, desejava contribuir para a formação individual de cada aluno, marcar de algum modo a vida daqueles a quem ensinava o que mais gostava. Sei que marquei e afortunadamente também fui marcada. Nunca perdi a esperança nas nossas crianças nem nos nossos jovens. E o tempo passou...
Foi um sonho que marcou o início desta história que vos conto - um sonho premonitório - que antecedeu alguns dias a manifestação devastadora da epilepsia do meu filho e, de um modo avassalador, transformou o caminho que percorríamos.
Pela primeira vez, vivia a maternidade e gozava o meu filho apreciando cada momento, cada gesto, cada sorriso com que aquele pequeno anjo me brindava. Sonhava com ele, com as nossas vidas e com um futuro colorido. Quis o destino que estes sonhos fossem substituídos por outros, mas com um denominador comum - a felicidade do Diogo - e as nossas vidas prosseguiram.
A vida brinda-nos com maturidade e a capacidade de lutar pelo que desejamos. Sendo assim, seguimos por caminhos meandrizados, marcados por obstáculos que pensávamos intransponíveis mas que foram sendo ultrapassados.
Ao longo do tempo, aprendi que as tempestades não se instalam nas nossas vidas para sempre. Seguem-se períodos de acalmia que nos permitem assimilar aprendizagens e crescer como indivíduos. Quando as tempestades passam, temos a oportunidade de curar as feridas e refortalecermo-nos para próximos desafios. 
Tenho uma grande convicção - sei que sigo um caminho que, de algum modo, já está traçado e que se vai revelando aos poucos. Sei que os meus sonhos se têm realizado e continuarão a ser concretizados porque luto por eles!
A felicidade que almejamos não é a perfeição, nem o mundo de fantasia em que as personagens vivem felizes para sempre. A felicidade é o somatório de conquistas - umas maiores do que outras - é a descoberta de um eu melhor, aquele que se ergue de cada vez que cai. É a força que vamos ganhando a cada embate, a cada derrocada. A felicidade conquista-se e aprende-se a ser vivida.
E os meus sonhos, de que são feitos os meus sonhos?... 
Nos meus sonhos deposito uma sementinha de esperança que revisto, carinhosamente, com os valores que me foram incutidos em criança. Protejo-a com a minha enorme vontade de que um dia germine e dê frutos doces. Alimento-a com paciência, muita paciência... e luto, todos os dias, para que vingue e se transforme em felicidade - o motor que me permite trilhar o meu caminho - pois acredito que o sonho comanda a vida!

sábado, 22 de outubro de 2016

Integração... para que te quero?


- " Mãe, pela primeira vez, sei o que é ser feliz na escola."
Fiquei muito feliz quando o Diogo me fez esta confidência mas fez-me pensar em cada palavra usada, na entoação dada e o verdadeiro significado do seu conjunto. Aquele "pela primeira vez" soou-me a mudança, a uma alteração do estado de espírito do meu filho e seria mais significativa e profunda do que alguma vez almejara. O uso destas três simples palavras provocou em mim um turbilhão de dúvidas e questionei se, alguma vez, o meu filho fora feliz na escola.
Como sabem, a sua entrada para o primeiro ano coincidiu com a segunda cirurgia de epilepsia. A sequela herdada foi a perda da consciência fonológica e, por isso, a aquisição de aprendizagens foi comprometida. Desde logo, teve o apoio de uma professora de educação especial - a nossa querida professora Alda - terapia da fala e terapia ocupacional, solicitadas logo que tivemos conhecimento de todas as possíveis sequelas. O meu filho adorava a professora P., professora titular da turma, que teve um trabalho louvável em conhecê-lo, integrá-lo na turma e transmitir-lhe confiança mesmo quando ele dizia não ser capaz. O trabalho articulado entre todas as professoras, que trabalhavam as suas dificuldades, foi precioso e o nosso rapaz evoluiu imenso. Contudo, todo esse trabalho era realizado numa salinha à parte, sempre só, sem os seus colegas. Tal condição era necessária pois o Diogo sofria de um défice de atenção e concentração muito acentuado. Era tão fácil para o meu filho distrair-se com um lápis e entrar num mundo imaginário só seu!...
Agora sei que, apesar de ser feliz, de gostar de todas as professoras e dos seus colegas, o Diogo ansiava, em segredo, ser verdadeiramente integrado na escola. Este seu desejo secreto relacionava-se com a partilha integral do espaço sala de aula e com a sua participação como igual nas atividades letivas.
A mudança de turma não criou qualquer instabilidade no meu rapaz. Conheço-o bem e, apesar de tudo, tem muita facilidade em fazer amigos. A professora P. será sempre uma referência para ele mas a separação tornara-se inevitável. Os colegas continuam a ser colegas mas ganharam um estatuto diferente - são os colegas antigos. 
A matrícula no terceiro ano, numa turma de terceiro ano, só beneficiou o Diogo pois foi confrontado com experiências novas, colegas novos e professora nova. Aquilo que ameaçava ser um fator perturbador no seu desenvolvimento tornou-se uma lufada de ar fresco. A motivação, o empenho e a vontade de melhorar foram revigorados. O nosso Diogo partilha o mesmo espaço e as mesmas atividades com os novos colegas
Agora, o meu filho é verdadeiramente feliz! Finalmente sente-se aceite. Finalmente é igual aos colegas. Finalmente está integrado! 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Mea culpa


Gosto de escrever. Sinto-me bem pois ajuda-me a refletir, a organizar ideias, e este é mais um desses momentos. Como já contei anteriormente, o presente ano letivo está a ser revelador... estou a ser bombardeada por desafios e a confrontar-me com consequências de escolhas que fiz.
Recuando no tempo, lembro-me das noites mal dormidas durante a gravidez da minha Laurinha. Recordo com nitidez o receio de ser incapaz de partilhar com a minha piolha o amor que tinha pelo seu irmão. Tive muito medo que o destino me reservasse mais uma mutação aleatória e que o inferno fosse ainda pior do que aquele que vivia. Parecia-me insuportável a ideia de passar outra vez pelo mesmo pesadelo.
A segunda gravidez foi muito desejada e, apesar de adiada, não teve como objetivo ter um filho que cuidasse do irmão. Sempre idealizei ter três filhos mas fiquei pelos dois. Costumo dizer que tenho dois filhos que valem por quatro! 
O Diogo exige muito devido à sua epilepsia refractária e tudo o que esta implica. A Laurinha não exige menos. É uma criança saudável mas a sua personalidade é forte e, sei agora, moldada à necessidade de ter a mesma atenção dedicada ao mano mais velho. Sempre tivemos presente a importância de manter o equilíbrio com os nossos filhos, de partilhar com ambos tudo a que tinham direito, mas falhámos - eu falhei! Não é fácil de admitir - mas é verdade! - e lembro-me bem da chamada de atenção da minha filha que, aos três anos, imitou perfeitamente uma crise idêntica às do Diogo.
A Laurinha já está na escola, é uma criança feliz e cheia de vida. Cativa todos com o seu sorriso e conquista com a sua simpatia. A Laurinha é autónoma nas suas tarefas e, apesar de não aceitar pacificamente uma correção, exige que me sente ao seu lado e assista, calada, à realização dos trabalhos de casa. Está no seu direito!
Os nossos feitios chocam e fazemos faísca quando a minha filha se lembra de fazer birras como chamadas de atenção. Reconheço não ter paciência para aturar as birras da piolha mas reconheço também a minha culpa na trama da Laura. Sinto que tem necessidade de lutar por conquistar o seu lugar... apesar de o ter e ser apenas seu, desde o dia em que nasceu. 
O nosso furacão, o diabo de saias cá de casa,... a nossa princesa irá crescer e, um dia, saberá que foi desde sempre a nossa rainha. Amo-te, minha querida filha, daqui até à Lua!

sábado, 24 de setembro de 2016

De professora a aprendiz


Passou mais um ano. Mais um ano e a minha desformatação continua. Tenho aprendido tanto... Quando olho para o caminho percorrido sinto-me assolada por uma sensação que não consigo explicar. Os sentimentos são confusos... como descrever um amor infinito, uma ferida que persiste em abrir, um desejo de atingir o que nos parece impossível e uma vontade imensa de ver o futuro antecipadamente? Como descrever o receio de falhar com os meus filhos? 
O Diogo e a Laura são o sol na minha vida. Acredito que o destino me presenteou com duas crianças que me desafiam constantemente, duas crianças que testam os meus limites e fazem de mim uma pessoa melhor. Os meus filhos transformaram a professora num aprendiz! 
Não sigo receitas ou livros - a sua aplicabilidade não traria felicidade nem para mim, nem para as minhas crianças. Os meus filhos proporcionam-me uma série de descobertas e sucessivas aventuras no reino da maternidade. Estou sempre a aprender com eles e deixo que o meu coração e a minha razão me guiem neste papel de mãe. Não é um exercício fácil mas tenho conseguido manter o equilíbrio necessário para orientá-los e tomar decisões importantes para as suas vidas.
Há uns meses, um pouco antes do período das matrículas, senti que o tempo não pára e as nossas vidas seguem o rumo que é suposto ser percorrido. A evolução do Diogo e a recuperação da consciência fonológica - sequela herdada na segunda cirurgia de epilepsia - têm sido conquistas suas e feitas ao seu ritmo mas, tal como acredito que algo nos está destinado, também acredito que não devemos ser meros observadores, apesar de sermos simples personagens secundárias na história de luta e superação do nosso filho. O Diogo tem um caminho a percorrer mas nós temos os nossos papéis secundários a desempenhar. Não podemos assistir, impávidos e serenos, o desenrolar da sua história. Pois bem, na possibilidade de termos diferentes caminhos para atingir um determinado objetivo, não deveremos trilhar aquele que se adeqúe às nossas capacidades e características, permitindo-nos alcançar o objetivo por nós próprios, sem sermos levados ao colo ou apanhar boleia de outros? Sendo assim, a transição do Diogo para o terceiro ano implicou mudanças e novas estratégias.
Aconselhei-me com a Dr.ª Manuela - neuropediatra do rapaz - e com todos aqueles que trabalhavam as dificuldades do meu filho. Partilhei, inclusive, as minhas dúvidas com a Margarida, professora de educação especial e minha colega na escola. O resultado determinou uma conversa difícil com o Diogo que teria como tópico único explicar a separação dos seus colegas de turma e da professora que o acompanhara desde o primeiro ano. A primeira reação foi negativa - "Não, mãe! Eu não quero mudar de turma!" - Ponto final. Mesmo assim, matriculei o meu filho no terceiro ano, numa turma de terceiro ano. Os coleguinhas seguiram para o quarto ano e mudaram de escola. O cordão umbilical do Diogo foi cortado pela segunda vez.
A Laurinha entrou para o primeiro ano e matriculei-a na mesma escola frequentada pelo irmão. A minha preocupação inicial incidiu na relação deles naquele espaço. Preparei os meus filhos, durante as férias de verão, e expliquei que cada um teria os seus amigos, as suas brincadeiras e não deveriam procurar o outro nos intervalos. Cada um seria responsável por si mesmo! É engraçado pois, logo no dia de apresentação, diferentes funcionárias diziam " Agora o Diogo vai tomar conta da Laurinha!". Não, eu não quero que os meus filhos andem atrelados! Cada um terá o seu espaço e, por isso, a sua história pois criamos os nossos filhos para serem independentes e autónomos. 
Estamos na segunda semana de aulas e sinto-me feliz pela decisão que tomei. No segundo dia de aulas, o Diogo confidenciou-me " Mãe, pela primeira vez, sei o que é ser feliz na escola."

  






domingo, 1 de maio de 2016

A relatividade do tempo II


O Diogo somou vitórias impensáveis no segundo ano letivo. Com muito empenho e persistência, com a dedicação de três professoras excecionais, novas estratégias e muitas terapias, o Diogo aprendeu a ler e a escrever. A recuperação da consciência fonológica tardou mas tornou-se real. Foi uma vitória não só para o meu filho mas também para todos aqueles que trabalharam com ele durante esses dois anos de desespero e incertezas. 
Eu questionava-me se tal recuperação seria possível,... sentia que mesmo os profissionais de saúde, que desde sempre o acompanharam, se sentiam ansiosos. Apesar de ser conhecida a plasticidade cerebral - capacidade do cérebro recuperar as funções perdidas devido à remoção de parte da displasia - cada organismo é um só e a recuperação não é garantida. Durante este período, embrenhei-me em artigos científicos sobre o tema. Li e pesquisei à procura de possíveis soluções para a sequela que o meu filho herdara da cirurgia e a única resposta que tive foi o tempo - era necessário dar tempo ao tempo e não desistir.
O primeiro ano foi um ano de estimulação neurológica pois, apesar de não conseguir aprender a ler, o Diogo fazia as mesmas tarefas que os colegas da turma realizavam, com muito apoio das professoras que com ele trabalhavam. Em casa repudiava a minha ajuda, por isso, pedi auxílio à Armanda - amiga da família e professora de educação especial - que o conhecia muito bem e conseguia aquilo que me era negado pelo meu filho, ajudá-lo. Durante o segundo ano, recorrendo ao método das vinte e oito palavras, a recuperação iniciou-se e as vitórias somaram-se. O Diogo começou a ganhar confiança e o sucesso foi alcançado. Mas o sucesso veio acompanhado de um sabor amargo para mim que se traduziu no reconhecimento do meu grau de formatação e na necessidade de desformatar. Apesar da recuperação, o Diogo ficaria retido no segundo ano de escolaridade.
Como todas as mães, sonhei com um futuro sorridente para o meu filho. Quis o destino que o Diogo tivesse uma vida complicada desde tenra idade mas nós nunca deixámos de sonhar. Passámos por fases muito difíceis mas conseguimos sempre superá-las com muito amor e continuámos a sonhar. As dificuldades eram superadas com a dedicação e persistência que tinham como denominador comum a felicidade do nosso filho e os sonhos continuavam. Apesar de termos os pés bem assentes no chão e de sabermos que a transição de ano era algo questionável, a ferida foi aberta novamente.
O percurso académico do nosso filho não será aquele que qualquer mãe ou pai idealiza para o seu filho. É aqui que a minha desformatação se inicia e as ideias pré concebidas caem por terra. Não me interessa que o Diogo faça o seu percurso num determinado período de tempo. Quero dotá-lo de capacidades para que seja autónomo e possa contribuir com algo positivo para a sociedade. Quero que ganhe competências que lhe permitam conquistar, ser crítico, que seja capaz de pensar por si e não seja influenciado por outros. Quero que se assuma como indivíduo numa sociedade plural e que seja feliz. Sendo assim, o tempo não tem relevo no seu processo de aquisições - elas serão feitas ao seu ritmo - e o que realmente importa é a sua consolidação. O tempo tem apenas a importância que cada um de nós lhe atribui - podemos encurtá-lo, até esticá-lo - e o nosso Diogo tem todo o tempo do mundo!

sábado, 16 de abril de 2016

A relatividade do tempo


O tempo é relativo e depende da importância que cada um de nós lhe atribui. Esta aprendizagem custou-me dias, meses sem sono e uma cascata de interrogações que quase me levaram à insanidade. 
A descoberta da sequela que o meu filho herdara da segunda cirurgia foi avassaladora. Eu receava tanto a perda da visão mas o que nos esperava era pior... a Dr.ª Clara bem nos avisara que, entre várias possibilidades, essa seria a mais desejável pois seria uma questão de tempo e adaptação. Agora entendo, com clareza, o que nos pretendia transmitir na altura. 
O Diogo perdeu a consciência fonológica, o que se traduz na perda dos pré-requisitos para a leitura. Parece simples mas, na realidade, é a base para todas as restantes aquisições. Assim sendo, o meu filho ingressou no primeiro ano de escolaridade sem a capacidade de juntar os sons das letras - não conseguia ler - e eu questionava-me sobre o seu futuro. Quantas vezes me torturei pela culpa que sentia em ter desejado a segunda cirurgia... Quantas vezes me torturei por ter sonhado com o que pensava ser para o seu bem.
Nesse mesmo ano letivo concorri para um horário em Massamá, no concelho de Sintra, e tive a oportunidade de conhecer pessoas que marcaram uma fase da minha vida. Passava grande parte do meu tempo na escola e falava muito sobre o Diogo. Não fugi à realidade, pelo contrário, tive tempo para interiorizá-la, aceitar e delinear o caminho a percorrer. Quantas horas de sono roubei à Manuela, ouvinte dos meus desabafos e confidente dos meus receios... um ombro amigo, a minha família em terras de mouros.
O Diogo não fez progressos no decorrer desse ano letivo. O sentimento de impotência era notório nos rostos daqueles que trabalhavam com o meu filho. A professora de educação especial não desistia, a professora titular da turma também não cedia mas eu sabia como era difícil lidar com esta situação. Apesar dos obstáculos, a estimulação neurológica era fundamental para uma possível recuperação que ninguém garantia. O futuro era desconhecido.
Em conversa com a Dr.ª Manuela, questionei se seria possível o cérebro compensar a perda da consciência fonológica com outra área pois parecia-me que a memorização estava mais desenvolvida no meu filho. A resposta foi positiva e a alavanca para novas estratégias a aplicar no ano letivo seguinte. 
No segundo ano, as professoras do Diogo aplicaram o método das 28 palavras e a recuperação foi vislumbrada. O Diogo teve três professoras - a professora da turma, a professora de educação especial e a professora de apoio - que num trabalho árduo e articulado conduziram o meu filho ao sucesso e por tal ser-lhes-ei eternamente grata. As sessões de hipoterapia e terapia da fala foram também dois instrumentos muito importantes para a recuperação do rapaz. 
Foi um ano repleto de vitórias que terminou com sabor amargo e com a minha desformatação. 

segunda-feira, 28 de março de 2016

A minha teoria do caos


A nostalgia invade-me e recordo momentos que vivi - uns mais intensamente do que outros - e que me moldaram e fizeram de mim quem sou. Muitas vezes questiono-me da razão do meu ser. Muitas vezes questiono as escolhas feitas e os caminhos por mim percorridos. A necessidade de parar, fazer um balanço e afastar-me de mim - ver-me do outro lado - é benéfica pois revitalizo-me e fortaleço-me para novos embates.
Fui uma criança muito feliz,... uma adolescente naturalmente revoltada e inconformada,... uma jovem curiosa e sedenta de novas experiências... e agora sou mulher e mãe de duas crianças que me preenchem a vida e enchem a alma. Pelo caminho fiz escolhas que me conduziram até aqui, até este momento em que me sento e questiono "quem sou?".
Os últimos anos catapultaram-me por experiências dolorosas com as quais aprendi muito e enriqueci imenso. Questionar-se-ão "como é possível enriquecer com o sofrimento" e eu respondo "são aprendizagens que, sendo assimiladas, nos permitem evoluir" e como evoluí,... por vezes, nem me reconheço.
Acontece, com alguma frequência, ver um reflexo meu num vidro e não me identificar com aquele invólucro e penso "quem é aquela pessoa"? Outras vezes, enquanto falo com alguém, oiço a minha voz e penso que não é minha, que se encontra desfasada do meu ser. E mais uma vez questiono "quem sou eu"?
É engraçado... ocorrem-me frequentemente ideias - supostas explicações para estas interrogações, sendo uma delas a teoria do caos - e mais uma vez revelo-me como mulher das ciências. A teoria do caos é uma das leis mais importantes do Universo e defende que uma mudança insignificante no início de um qualquer acontecimento pode traduzir-se em consequências absolutamente desconhecidas no futuro. Assim sendo, esses acontecimentos são caóticos, completamente imprevisíveis. É espantoso como revejo na minha vida esta teoria.
Lembro-me de ser pequena e de ouvir a minha mãe contar histórias do colégio que frequentara em Luanda - um colégio de freiras que castigavam os alunos à moda antiga. Mais tarde, quando tive de optar entre tirar um curso de enfermagem, no Porto e numa escola de freiras, ou de Geologia, em Coimbra, essa recordação manifestou-se inconscientemente e o meu caminho foi traçado.
Houve momentos em que pensei que o caos se instalara na minha vida. Vivi momentos muito dolorosos e zanguei-me com Deus. Questionei os obstáculos que me colocava constantemente e, apesar de tudo, segui o meu caminho. Um caminho nem sempre claro - dei muitos passos na escuridão - mas segui sempre o meu coração e a minha intuição. Sei que era orientada por alguém - a minha avó - e que em cada porto seguro, depois de uma tempestade, interiorizava as experiências e tentava antecipar-me ao futuro, até que este deixou de ser caótico e mais previsível. 
Não tenho capacidade para adivinhar, nem sequer anseio tal, mas tenho uma força dentro de mim que me faz enfrentar a vida de cabeça erguida e determinação. E é, então, que me questiono novamente "quem sou"? De onde vem esta certeza de ter um caminho a percorrer, um destino a cumprir? Por que me cruzo com desconhecidos que me são familiares e todos desempenham um papel na minha vida? Por que razão me lembro de lugares que nada me dizem e, mais cedo ou mais tarde, tornam-se uma paragem no meu caminho? Uma certeza trago comigo - como que enraizada no meu mais profundo ser - esta vida é apenas uma passagem! Existe muito mais para além deste plano - chamo-lhe assim! - e sinto que aqueles que um dia vi partir estão novamente comigo. Cada dia sinto-o mais e eu quem sou no meio deste enredo? Sou uma alma que se recusa a envelhecer. Não me refiro às rugas vincadas no rosto ou às maleitas que começam a despertar... mas sim a esta vontade imensa de continuar a sonhar! 
E mais uma vez pergunto "afinal, quem sou eu"?

sábado, 5 de março de 2016

Nós e o Bullying


Quando o Diogo regressou da segunda cirurgia, com um atestado médico de 30 dias, recusou-se a ficar em casa. Tudo o que desejava era voltar a encontrar os amigos do infantário, conhecer os colegas novos e a senhora professora. Mesmo explicando que não podia - pois tinha sido uma operação complicada e não podia arriscar-se a bater com a cabeça - o meu filho suplicava-me para ir para a escola. Tanto insistiu que acabei por telefonar à Diretora da escola a solicitar uma reunião com a professora para se conhecerem. E assim foi... 
Reunimos na sala de aulas para o Diogo ser apresentado aos colegas. Pouco depois, saíram para o intervalo e o meu filho desapareceu também. Fiquei com receio mas logo me tranquilizaram pois as funcionárias da escola estavam a vigiá-lo e estava acompanhado por uma amiga especial que lhe mostrava os cantos da escola. Depois de contar a história do Diogo e explicar como agir em situação de crise, ficou combinado que poderia começar a frequentar as aulas de modo gradual: na primeira semana, aulas até ao intervalo da manhã; segunda semana, aulas até ao intervalo da manhã e intervalo da tarde; terceira semana, manhã e parte da tarde; quarta semana, o dia todo. A Dr.ª Clara proibira o meu filho de praticar qualquer desporto esse ano letivo, por isso, não assistia sequer às aulas de educação física. 
A adaptação à escola decorreu com tranquilidade. No fim das aulas, contava-me o que tinha feito na escola, com quem tinha brincado e pouco mais. Até que o pouco mais tornou-se um nada e começou a fazer crises no fim do dia. Não era possível tal estar a acontecer pois as crises eram menos frequentes desde a cirurgia e ocorriam apenas no período de sono. Algo se passava com o Diogo. Fiquei alerta.
Certo dia, e após alguma insistência minha, contou-me que um colega da turma se levantava todos os dias, várias vezes, passava por ele e dava-lhe uma sapatada na cabeça, "Está explicado!"
Apesar de muito se falar e publicar sobre bullying, descobri que pouco se sabe. Aprendemos muito quando o bullying entra em nossa casa, não com o que lemos ou ouvimos. Na altura questionei-me se a palavra bullying não seria muito forte para o que acontecia com o meu filho... Se perguntasse a opinião a alguém não duvido que me responderiam - "Achas? Isso é normal nos miúdos dessa idade! Não ligues."- pois!...
Para mim, bullying é tudo aquilo que perturba emocionalmente o Diogo, traduzindo-se num aumento de crises. E agora, o que fazer? Fui à escola e contei à professora o que se passava, de modo a que pudesse intervir caso se apercebesse de algo ou de modo a evitar que tal voltasse a acontecer, mas as crises não cessaram e o massacre psicológico continuava. Foi então que me apercebi que quanto menos reagisse, mais o meu filho se transformava numa vítima e fiz algo que nunca pensei ter de fazer... "Diogo, quando o teu colega voltar a bater-te, dá-lhe um murro na barriga para ele saber que também és forte. Mas com força! Se a senhora professora perguntar por que o fizeste, diz que foi a mãe que mandou."- remédio santo e as crises normalizaram.
Não me julguem pois não imaginam o quanto dói à criança e aos pais e garanto-vos que fariam o mesmo numa situação idêntica. Deus me perdoe mas nunca direi ao meu filho para oferecer a outra face! No mundo em que estamos, nunca!
No fim do mesmo ano letivo, fui alertada por um colega do meu filho que uns meninos do terceiro ano pretendiam fazer um tipo de emboscada para lhe tirarem o capacete que usava como proteção e verem o que tinha na cabeça. Fiquei doente, completamente transtornada. Como é possível as crianças serem tão cruéis? Pensei telefonar à tia do miúdo pois era minha conhecida... "Não, Patrícia! Não podes ser tu a resolver o problema, tem de ser o Diogo". Durante o fim de semana falei com o meu filho e disse-lhe: "Se te pedirem o capacete não te preocupes e empresta-o, não faz mal. Aproveita e pede o boné em troca."
E assim foi. Alguns dias mais tarde diziam-me: "O Diogo anda todo divertido nos intervalos a trocar o capacete por bonés".
O Diogo sofre de bullying esporádico, eu diria até bullying sazonal. Não é sistemático, ocorre no início de cada ano letivo e sempre praticado por alunos diferentes ou novos na escola. Sendo uma criança pacífica e infantil, que gosta de brincar com todos, torna-se um alvo fácil para aqueles que gostam de humilhar e obtêm satisfação com tal ação. Apesar de tudo, o meu filho adora a escola e vai aprendendo a lidar com as situações. Não é a mãe que resolve os seus problemas - é ele próprio - e não resolve sempre da mesma maneira. Vai adaptando-se e sabe o que é melhor para ele. 
Eu não gosto da palavra bullying mas ela existe e manifesta-se na vida do meu filho e, por isso, surgiu a necessidade de o ensinar a defender-se. O Diogo sabe que não é correto bater nos outros e que os problemas não se resolvem à pancada mas se tiver que fazê-lo para se defender, fá-lo. Acima de tudo, o Diogo sabe que deve socorrer outros e ajudá-los em situações idênticas. Não, não foi a mãe que lho disse, foi ele mesmo que o assumiu. E não seria mais fácil combater o bullying se outros fizessem o mesmo? 



sábado, 13 de fevereiro de 2016

Errar é humano... e não só!



Feliz o ignorante, feliz aquele que sai de casa, todos os dias, sem imaginar o que lhe poderá estar destinado daí a umas horas, talvez dias ou sabe-se lá quando. Coitado daquele que vive aprisionado a uma angústia que atormenta a alma e se torna prisão dos melhores sentimentos que o comum mortal pode ansiar. Eu encontro-me no meio, a fazer equilibrismo, numa corda bamba, que teimo manter quietinha de modo a não cair no abismo. 
Sou curiosa e, por isso, sei demais, mais do que deveria pois não é da minha competência saber o que sei... depois de assimilar o conhecimento rezo para apagá-lo, passar uma borracha e tirá-lo do meu pensamento mas a assimilação é muito rápida tornando-se, por isso, inevitável esquecer. Assim sendo, guardo a informação numa gaveta do meu cérebro, mantenho-me consciente da sua existência e assim tenho vivido e evoluído.
Sempre ouvi dizer que "errar é humano" mas, apesar de concordar, tenho que acrescentar que errar é natural - a natureza erra - e nós somos também o fruto de erros ocasionais, uns mais do que outros. Se analisarmos atentamente a natureza do ser humano, podemos identificar muitos erros: erros que conduziram, por vezes, a humanidade à obscuridade mas que abriram portas para um melhor conhecimento da nossa espécie e para períodos mais humanistas. E eu questiono-me, muitas vezes, se não estaremos presentemente a atingir uma bifurcação ou algo que esteja a catapultar, mais uma vez, a espécie humana para um salto evolutivo... sei que o meu raciocínio parece incoerente e inconsistente mas tem a sua razão de ser.
Quando olho à minha volta vejo tecnologia, tecnologia e mais tecnologia: aquela tecnologia que nos permite desenvolver o nosso trabalho mais rapidamente; aquela tecnologia que nos permite chegar a lugares distantes, estando sentados apenas à frente de um computador; tecnologia que nos permite desenvolver curas para determinadas doenças e proporcionar qualidade de vida a pessoas que nunca pensariam, noutros tempos, fazer metade daquilo que fazem nos dias de hoje. Vejo também a outra tecnologia que nos mantém reféns e cada vez mais solitários, aquela tecnologia que está a desumanizar-nos, a embrutecer-nos, a tornar-nos incapazes de estabelecer relações in vivo. Cabe a cada um de nós usar toda esta tecnologia da melhor forma e dela obter o melhor. 
Devaneio à parte, chego aonde queria... o cerne da questão: mais uma vez os erros da natureza para compensar uma evolução distorcida e cumulativamente embrutecedora. Os nossos erros são humanos - logo imperfeitos na minha perspetiva - mas os erros da natureza, para além de serem aleatórios, são necessários e corretores. Confusos? Ainda bem...
Pois bem, o que vejo a acontecer à minha volta e neste pequeno mundo que é o meu? Vejo o número de crianças, vítimas de doenças avassaladoras, a aumentar; vejo as suas mães a usarem todos os meios disponíveis para partilhar as suas experiências dolorosas e, por outro lado, vejo miúdos e graúdos a perderem sensibilidade pela dor alheia e a serem os primeiros a terem prazer em infligi-la a terceiros... O que mais vejo são seres pensantes a errar, vezes sem conta, e a caírem num precipício sem fundo. Como vejo isto? Porque ocorreu um erro que atingiu a minha vida e permitiu-me ter uma outra perspectiva sobre o que me rodeia - uma mutação completamente aleatória que escolheu o meu Diogo. Não foi um erro meu, foi um erro da natureza. 
Tal como o meu filho, muitos outros estão a ser brindados com estes erros naturais e a contribuir, de um modo doloroso para alguns, com as excepções à regra quando a regra é termos crianças que não conseguem distinguir o bem do mal, que são insensíveis e se fortalecem com a dor, a humilhação que provocam nos seus pares,... crianças que querem, podem e mandam. 
Pois este erro da natureza deu-me um presente, um filho amoroso que todos os dias diz que me ama e que sou a sua melhor amiga. Um filho que me ensinou a viver e a amar a vida tal como ela se apresenta, com mais ou menos obstáculos. Um filho que me lembra que todos os dias devem ser vividos intensamente e que o mundo dos afetos é mais importante do que tudo o resto. 
Em tempos visivelmente conturbados, socialmente e distorcidos de sentimentos, são crianças como o meu filho que corrigem os erros cometidos pelo Homem e nos lembram que podemos ser melhores. Estas crianças são mensageiras do amor e são as janelas para um futuro melhor, mais solidário e compreensivo. Eu mantenho a esperança na construção de um futuro melhor e na correção harmoniosa dos erros causados pelo Homem e a sua tecnologia. Eu mantenho-me convicta de que estes erros da natureza são um sinal da mudança de consciências e um impulso para que a evolução da nossa espécie volte ao percurso natural. Vá lá... estarei assim tão errada?









domingo, 7 de fevereiro de 2016

8 de fevereiro - Dia Internacional da Epilepsia


Existe uma efeméride que não me é indiferente e que se comemora na segunda-feira, da segunda semana de fevereiro - o Dia Internacional da Epilepsia - e é tão fácil de se adivinhar a razão...
Vivo com a epilepsia diariamente há cerca de oito anos e, como se diz, primeiro estranha-se e depois entranha-se. No início foi um autêntico pesadelo! Com o tempo, as rotinas ajustaram-se, o convívio diário com a epilepsia tornou-se familiar e seguimos todos em frente.
Desde então aprendi a valorizar as pequenas conquistas do meu filho, todas feitas por ele e ao seu ritmo. O processo de aceitação instalou-se e, degrau a degrau, temos avançado - sempre com o bem-estar do nosso filho como prioridade. A cada embate seguem-se novas aprendizagens, a descoberta de novos horizontes... e a consciência de vivermos numa sociedade cada vez mais castradora, desigual e preconceituosa.
Na verdade, a epilepsia é muito mais do que ter crises... a epilepsia implica muito mais do que podemos imaginar. A epilepsia, como a do meu filho, é para toda a vida! Exige muito dele mas também de todos aqueles que o rodeiam: exige que tenhamos capacidade para nos reestruturarmos como família pois as relações são brutalmente minadas pelo sentimento de impotência; exige um processo de aceitação infindável e muito doloroso; exige um processo de desformatação que se torna a base de um novo entendimento do ser, distinto daquele que apreendemos desde cedo; exige que sejamos capazes de aprender com as dificuldades e ajustemos os nossos sonhos à dura realidade; exige uma capacidade de adaptação quase sobre humana quando aquele que amamos não corresponde aos parâmetros de perfeição exigidos pela sociedade; exige uma luta constante contra o preconceito e a desigualdade... muito? Não, exige tudo de nós!
Oito anos passaram e, apesar de muito se ter feito, muito mais há ainda por fazer. Muitos obstáculos têm sido ultrapassados e o nosso Diogo recebeu parte das ferramentas que permitir-lhe-ão construir o seu caminho. É uma criança amorosa, justa e amiga - com um coração de ouro que cativa aqueles que trabalham com ele. É uma criança com consciência das suas dificuldades, possuidor de uma humildade que lhe permite aceitar ajuda para melhorar e sabedor de que, apesar de tudo, não é inferior a ninguém, por isso, não gosta de ser tratado de modo diferente. 
A diferença reside na mentalidade dos outros - não no meu filho - ele é autêntico e feliz! A sua epilepsia anda de mãos dadas connosco e tornou-se nossa companheira de viagem... sendo assim, comemoremos o seu dia - o Dia Internacional da Epilepsia!


quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

As iludências aparudem...


Nunca vivi de ilusões... apesar de ser estreante num clube restrito de mães com crianças que não vêm descritas nos livros, senti imediatamente necessidade de falar sobre a epilepsia do meu filho e suas condicionantes. A minha vontade era de gritar pois sentia-me angustiada e impotente. Sentia que, apesar de rodeada por muitos que me apoiavam, estava só - era uma ilha no meio da multidão. 
A epilepsia é uma doença neurológica sobre a qual poucos falam e muitos têm pouca vontade de falar. Os que sofrem dela não a mencionam ou tentam esquecê-la... poucos são aqueles que a assumem devido ao preconceito - este é o maior inimigo do meu filho e não a sua epilepsia. 
Apercebi-me da existência deste monstro quando regressei à escola, após o internamento do Diogo no Maria Pia. Foi quando alguns me confidenciaram que também tinham epilepsia mas "estava controlada... já não tenho crises!". Os meus sensores de perigo foram logo alertados e pensei - "Patrícia, estás a entrar em terreno com areias movediças!". 
Não me calei desde então... o meu coração sentia-se apaziguado e, na minha mente, gravava a informação que tão penosa era de assimilar. Ao proceder desta forma contribuía com informação que julgava ser suficiente para afastar o preconceito do meu filho e da sua epilepsia. Por tempos fui bem sucedida...
Depois da segunda cirurgia, o Diogo começou a frequentar o primeiro ano do ensino básico. A escola nova, os colegas e as professoras eram uma novidade na vida do rapaz. Já o uso diário e contínuo do capacete - que usava para proteger a cabeça - era um velho hábito adquirido numa primeira ronda por terras de mouros. Foi então que me deparei novamente com o preconceito. 
As crianças questionavam os pais, os pais questionavam-me - "Desculpe a pergunta mas o meu filho quer saber por que razão o seu menino usa um capacete" - e eu respondia sem problema e com naturalidade às interrogações que me faziam. Certo dia, fiquei sem palavras quando uma mãe viu o Diogo sem capacete e, arregalando os olhos com uma expressão de absoluta incredulidade, proferiu a frase que me fez tremer - "Nunca pensei que o seu filho fosse um menino tão bonito!". 
Pois, o meu filho era diferente, o meu filho era o capacete... a criança fora anulada por um acessório! Senti o meu coração a rasgar-se, senti um aperto no peito e um amor ainda maior pela minha cria. Já no carro e a caminho de casa gritei - "Sim, o meu filho é LINDO, o meu filho é MARAVILHOSO!".
Escondido pelo capacete estava um anjo... uma criança com um coração enorme capaz de oferecer o seu carrinho preferido a um colega, que chorava por outro lhe ter batido, com esperança de fazê-lo feliz... uma criança que me ensinou a amar em toda a plenitude do seu significado... uma criança que me faz acreditar que todos somos capazes... que todos podemos ser melhores.
Acredito que o restrito clube a que dizia pertencer se está a alargar e todas nós, mães de crianças maravilhosas, temos um papel a desempenhar. Acredito que, pela partilha das nossas experiências, podemos começar a mudar mentalidades, despertar consciências... acredito que existem pessoas boas... acredito na construção de um mundo melhor!