quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sem perdão


Os meus momentos de introspeção tornam-se mais frequentes quando algo provoca turbulência na minha tranquilidade aparente. Ao contrário do que muitos pensam, não sou calma. Sei que aparento sê-lo mas, se fosse possível sentirem o turbilhão de pensamentos e de sensações que experimento no interior do meu ser quando, de repente, sinto algo que me repugna, possivelmente sentir-se-iam tão agoniados quanto eu. É assim que me sinto e quanto mais intensa é essa sensação, mais fechada me torno. 
Sentimos ser contra-natura um filho morrer antes dos seus progenitores, mas acontece. Às vezes a ordem que conhecemos altera-se e, por muito que nos custe, vamos aceitando. Outra inversão, deste acontecimento que marca o fim precoce de uma vida, é morrer-se pelas mãos de um progenitor. Reviram-se-me as entranhas! E recuso-me a entender tamanho ato monstruoso! Não con-si-go! 
Volto a fechar-me e questiono a razão de um ser inofensivo, e com tão pouca experiência nesta Vida, ver negada e interrompida, de modo abrupto, a sua passagem por esta Terra. Não veremos a sua luz e ela não verá o que podia ter sido. Um desperdício de humanidade...
Encaro a minha passagem por cá como tal, apenas uma passagem. Reconheço que já limei as arestas a alguns defeitos meus mas possuo outros que me farão companhia até o Além, mais uma vez. Não será nesta vida que conseguirei aprender tudo o que gostaria de aprender. Tenho feito os meus "trabalhos de casa" mas não conseguirei concluí-los na totalidade. 
Existem aprendizagens extremamente difíceis e a que mais me transtorna é a capacidade de perdoar. Tenho a certeza que poucos possuem esta virtude e eu não me encontro entre eles. Se pudesse ter um super poder seria esse - saber perdoar - mas possuo este diamante bruto por lapidar. 
Certo dia disseram-me que quem não perdoa, vive entorpecido pelo veneno. Os momentos de raiva sucedem-se e mesmo que sintamos alguma tranquilidade passageira nas nossas vidas, é só mesmo isso, passageira. Podem passar dias, semanas, meses, até anos,... esquecemos essa mágoa que carregamos ao peito mas ela está lá. Basta uma palavra, uma memória inofensiva, aquele clique que a desperte pois continuas a transportá-la dentro de ti, naquele cantinho escondido e minúsculo, nas profundezas do teu ser, do teu coração. Corações magoados não se curam facilmente. São como uma peça rara que se parte e que tentamos colar, pedacinho por pedacinho, com a esperança de reconstruir a delicadeza perdida. Mas a mágoa é um veneno, queima a alma de quem a carrega. Assombra a existência delicada e atormentada de quem sofre em silêncio. Quem não perdoa morre do próprio veneno. Definha com o tempo.
E eu perderia a minha racionalidade. E viveria atormentada pela perda de um filho, enclausurada num passado que me apresentaria à loucura, sem qualquer perdão!

terça-feira, 12 de maio de 2020

Solidão


Sou daquelas pessoas que pensa mais do que se faz ouvir. Sobretudo entre amigos. Tenho uma amiga e confidente com quem falo dos meus devaneios, das minhas crenças e exponho aqueles pensamentos mais absurdos que não encaixam na mentalidade da maioria. Tenho pena de estarmos separadas geograficamente pois com ela não tenho pudor ou receio de dizer o que penso, sob a ameaça de me acharem alucinada. Partilhamos conversas de conteúdo restrito, por assim dizer. 
Apesar de rodeada por muitos, sinto-me só. Às vezes até sinto multidões a rodear-me... mas, na verdade, estou só. Será real esse sentimento de solidão ou esta minha perceção não será apenas ilusão?
Senti uma grande solidão em 2008. Este ano foi cravejado a fogo na minha família e deixou cicatrizes permanentes. Surgiu a epilepsia refratária do meu filho. Vivemos um pesadelo na altura e, apesar de todo o apoio que recebi, nunca me senti tão só em toda a minha vida. O meu filho, a sua vivência na epilepsia, alterara as nossas rotinas e deixei de me identificar com a vida que fazia até então. Aprendi, a muito custo, a relativizar qualquer acontecimento. Sim, aprendi pois relativizar é mais difícil do que se pensa. Implica abandonar, esquecer os nossos sonhos e substituí-los por outros - que sempre vi como remendos, apesar de não o admitir - pelo menos assim pensava. Não mais!
Sem saber, a minha vida seguiu o rumo devido. Este foi sempre o caminho. Eu não o sabia. Desculpem-me a frieza mas só cresce quem sofre. Caso contrário, estaria ainda a viver uma vida em que me julgava feliz, sem ser conhecedora de um amor profundo, de uma dor insustentável que nos esmaga a alma e de uma raiva que nos sufoca. Um tormento que tudo quer e tudo pode perante a vizinhança do abismo. Estive lá, perto, a um passo da queda. Caí! E agora estou aqui. 
Senti inveja daqueles que viviam tranquilamente. Imaginava-me a viver um futuro diferente do que me esperava mas que se assemelhava ao que, em tempos não muito longínquos, idealizara. Senti-me impotente, sem força para lutar perante tão vil tempestade. Invejei o sorriso nos lábios dos outros, a sensação de controle que me parecia terem dos seus destinos. Para muitos o futuro é fácil e previsível. Para mim o futuro era uma grande incógnita, um pano escuro que metia medo e não me permitia desvendar nada. Quase me sentia a andar às apalpadelas com receio de tropeçar. E tropecei! Tropecei e demorei a levantar-me. Anos, muitos anos. Perdi a auto-estima, esta andou pelas ruas da amargura... contentei-me com pouco. O que os outros pensavam nada me dizia. Deixei de acreditar em mim! Em mim! 
Como foi possível? Para além de me zangar com Deus, zanguei-me comigo mesma. A Ele, apontei o dedo e  acusei de fazer sofrer um inocente, a mim, acusei de ter permitido que tal acontecesse e, desde então, senti-me, de algum modo, culpada. A sério, Patrícia? Pois... O que mudou? Tudo e nada, ao mesmo tempo.
Fui descobrindo que tinha, em mim, todas as ferramentas necessárias para me sentir bem e ser melhor. Não precisava de aprender nada de novo, apenas viver e experimentar o que escrevia ou pensava. Não precisava de terapia como julgara pois podia atribuir um novo significado a situações que me assombravam. Não precisava de um milagre para o meu filho, como desejara, nele já se manifestara o milagre da vida. 
Preciso apenas de acreditar em mim, de acreditar nele. Não são palavras vãs. São a verdade e é o que ensino aos meus filhos todos os dias! Sei que não existem limites, que tudo podemos por amor, e quando vivenciamos a sua imensidão é impossível sentir solidão!