sexta-feira, 31 de julho de 2015

Há muitas maneiras de se ser feliz!


Um amigo meu é desta opinião e eu partilho-a com ele... mas também me interrogo "por que é mais fácil para uns do que para outros serem felizes?".
Dois mil e doze traduziu-se num compasso de espera tortuoso e muito introspectivo. A epilepsia entrara nas nossas vidas de rompante e fizera tremer os alicerces de um casamento em que os nossos votos foram “…na saúde e na doença… na alegria e na tristeza, até que a morte nos separe”. Pois não foi a morte que nos separou, pelo menos no sentido amplo da palavra, foi a morte de um punhado de sonhos que partilháramos desde o dia em que nos conhecemos. 
Eu e o Filipe afastámo-nos em consequência de uma frustração devastadora e um sentimento de impotência colossal para com o bem-estar do nosso filho. Por mais atentos e informados que estivéssemos, por mais riscos que corrêssemos com o nosso filho, ele não melhorava e a maldita epilepsia não desaparecia. Abafámos as nossas angústias e afastámo-nos. Passámos a ser apenas aquela pessoa que partilhava o mesmo teto e mais nada. Eu perdi a minha capacidade de diálogo com o meu marido pois tornara-se evidente que nenhum de nós tinha disposição para ouvir o que o outro tinha para dizer. As tentativas de diálogo tornaram-se monólogos silenciosos ou discussões acusadoras e sem sentido. O casamento deteorava-se, o que se tornara percetível a quem nos rodeava. Não escondíamos a ninguém a nossa intolerância ao mais pequeno gesto do outro. 
Mas como chegámos a este ponto? Simples, muito simples… o casamento, em geral, não é um mar de rosas. É uma caminhada a dois que nem sempre é tranquila pois as vicissitudes da vida nem sempre o permitem. Se num casamento em que tudo é normal os confrontos existem, imaginem num casamento em que as rotinas são diferentes, a partilha da cama é feita com o filho e a maior preocupação é esse mesmo filho. Não é desculpa para os desentendimentos, até porque o mais razoável seria uma maior união, mas conduziu-nos a um acumular de acusações, de mágoa e intolerância para com o outro tornando-nos num casal de estranhos.
Sou sincera… não julgo aqueles que seguem caminhos diferentes do nosso, cheguei ao ponto de ponderar o mesmo apesar de achar um ato de covardia, mas as nossas vidas eram um inferno na terra. Até o uso da aliança de casamento se tornara insuportável para mim. Foi nessa altura que me questionei sobre o que acontecera ao sentimento que me unira ao Filipe. Questionei-me sobre quais seriam os seus sentimentos para comigo. Teriam morrido? Felizmente tivemos maturidade para falar sobre nós, o que sofríamos em silêncio, e conseguimos salvar o nosso casamento. Nem sempre é fácil... o silêncio apodera-se de nós, perdemos a capacidade de exteriorizar os nossos sentimentos e criamos uma capa protetora que nos impede de a romper. Lembro-me de afastar os lábios mas de não conseguir emitir qualquer som, nem simples palavra, apenas gerava um turbilhão de monólogos no meu cérebro que parecia fazer-me explodir. Mas lembro-me também de me sentir feliz quando o meu marido esboçava um sorriso nos lábios, por qualquer razão, e logo de seguida se desvanecia, por outra razão qualquer. 
Muitas vezes só nos apercebemos do amor que temos por alguém quando o sentimos em perigo, pelas mais diversas razões, seja por doença, seja pela ausência, seja pelo que for que nos faça sofrer. Quando se vive tranquilamente não damos valor ao que temos, só quando o perdemos. Esta foi uma lição de vida que aprendemos com muito sofrimento mas que nos permitiu voltar a trilhar o caminho da busca da felicidade. Desengane-se aquele que julga que se é feliz sem lutar para sê-lo. A felicidade constrói-se, alimenta-se, acarinha-se. Todos podemos ser felizes mesmo que pensemos o contrário... basta abrir os olhos, reconhecê-la e trilhar os seus caminhos. Sejam felizes! 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Parabéns, meu amor!


Hoje é o aniversário do Diogo, faz nove anos que o nosso filhote nasceu. Lembro-me, como se fosse hoje, das dores das contrações que no momento me atordoavam os sentidos e me tornavam um pouco resmungona. A minha mãe, com o intuito de me ajudar a tornar o momento mais suportável dizia "Calma, Ticha. Isso já vai passar..." e eu sentia-as a conquistar terreno e a tornar o meu corpo cada vez mais dorido. Eu tentava lutar contra elas mas de nada servia... tentava ignorá-las e de nada adiantava. Torcia-me toda. Cada contração que se seguia era mais forte, mais avassaladora. A determinada altura, doida com aquelas dores e ansiosa por ter o meu filho nos meus braços, arregalei os olhos e respondi "Mãe, já não te posso ouvir!". Cerca de duas horas mais tarde, a enfermeira parteira deu-me a boa notícia "Está na hora de ver o seu filho!". Passaram poucos minutos e nascia o Diogo, o meu tesouro. Foram-se as dores, esqueci-as imediatamente. Aquele momento, em que via o ser que albergava dentro de mim e só conhecia pelas ecografias, tornara-se o mais importante. Tornara-se o centro do meu mundo. Olhei para ele, tirei-lhe a fotografia mental, e peguei-o nos meus braços. Meu Deus! Como é bonito ser mãe!
Passaram nove anos... até custa acreditar. Nesta sua curta vida já travou batalhas muito dolorosas - sentiu-as na própria pele - mas venceu-as sempre com um sorriso nos lábios. Tem sido para nós, pais e família, um exemplo de luta e superação. Os obstáculos vão sucedendo-se e sendo ultrapassados, um de cada vez e ao seu ritmo. O meu filho é o meu herói, o herói de todos nós!
Muitas vezes, surpreendo-me e sou surpreendida, por quem me acompanha, a observá-lo... a admirá-lo... a pensar como poderia ser diferente a sua vida, mas por que razão? O meu filho é uma criança extremamente feliz! Tem uma vida completamente normal e não sofre quaisquer restrições. É livre! Corre, cortando o vento, salta e ultrapassa barreiras supostamente intransponíveis, desafia a ordem dos acontecimentos e dá luta à vida. É nele que nos revigoramos, que ganhamos forças para novos embates. O Diogo é o Sol que ilumina as nossas vidas, é o nosso farol em tempos turbulentos e a chama reconfortante que nos assegura que a vida vale a pena ser vivida, intensamente e simplesmente... e o meu maior desejo é que levante voo... voe bem alto ao sabor do vento. Voa, meu filho!

Parabéns, meu amor! Amo-te daqui até à Lua! 

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Deus escreve certo por linhas tortas...


O dia 17 de maio de 2012 marcou o início da compreensão, pelo Diogo, sobre o que era a epilepsia. Nesse dia regressámos a Lisboa para a consulta de neurocirurgia com a Dr.ª Clara Romero. Apesar de já ser do nosso conhecimento a realização da segunda cirurgia, ignorávamos todos os riscos que lhe estavam associados. 
O Diogo iria ao bloco por duas vezes. Numa primeira cirurgia, seria aberto o crânio e colocada uma rede de elétrodos intra cranianos para localização da displasia. Ficaria sob observação e a registar crises até ao dia da cirurgia propriamente dita, durante a qual se extrairia a porção da displasia que lhe causava as crises. O risco de desenvolver infecções seria muito elevado - o crânio já tinha sido aberto numa cirurgia anterior - e ficaria com fios a comunicar com o exterior durante alguns dias. Eram dadas como certas a ocorrência de sequelas nomeadamente a perda da visão do lado direito e a perda da linguagem, esta reversível com terapia. O quadro que nos foi apresentado foi realmente muito negro mas teríamos, mesmo assim, de avançar. Meu Deus!
Mantivemo-nos mudos na viagem de regresso. Eu sentia-me completamente confusa e reticente em aceitar tal prognóstico. O meu filho era uma criança incrível! Passara por tanto e teria de sofrer ainda mais... Seria isto o que desejávamos ao nosso menino? Pensava o que pesaria mais,... o que seria melhor para ele? Seria preferível continuar com as crises pela vida fora, dependente de medicação e com um desenvolvimento cognitivo comprometido, ou ficar sem elas e perder a visão? Apesar de ser uma sequela facilmente ultrapassada por quem a sofre e de ser, entre muitas outras, a mais desejável, eu não a queria para o meu filho. Muitas vezes me disseram “Existem casos piores do que o do Diogo" mas eu nunca vivi com a dor dos outros. Eu sou feliz por ver os outros felizes. É verdade que existem situações bem piores mas isso nunca me consolou nem consolará. Raio!... Eu nunca quis esta maldita epilepsia para o meu filho!
Com todo este turbilhão de pensamentos a assombrar-me, fui ainda a uma reunião de departamento na escola e o Filipe para o trabalho. O Diogo ficou nos avós onde já estava a mana. Quando a reunião terminou fui à minha mãe que se apercebeu do meu estado de espírito e questionou-me sobre a consulta. Respondi apenas que seria feita uma segunda cirurgia e estava cansada. 
A Laurinha adormeceu no caminho para casa e, por isso, ficou no carro enquanto eu adiantava o jantar. Deixara as portas do carro e do acesso à garagem abertas para ouvir o seu despertar que seria bem audível. E assim foi... "Diogo, a mamã vai à garagem porque a Laurinha acordou, não saias daí.” Quando me aproximei do carro, e comecei a libertar a minha filha da cadeirinha, apercebi-me de passos - era o Diogo. Meia dúzia de passos e fez-se silêncio. “Diogo! Estás bem?”. Silêncio. O meu cérebro deu o alerta de imediato, voltei a prender o cinto à Laura e corri para as escadas confirmando o meu maior receio. O Diogo fez uma crise e mergulhou pelas escadas. 
O quadro com que me deparei perseguiu-me durante muito tempo e foi difícil de esquecer. Encontrei o meu filho estendido nas escadas, de cabeça para baixo e braços abertos, ainda em crise. Nada fiz senão esperar pelo fim da crise e o Diogo, quando voltou a si sem saber o que tinha acontecido, desatou num pranto. Ao vê-lo a sangrar de um olho, não hesitei e peguei nele, coloquei-o na cadeirinha e arranquei para a minha mãe. Entreguei a Laurinha e disse que ia para as urgências pois o Diogo caíra nas escadas. Entretanto liguei ao meu marido e apanhei-o no trabalho. 
Em quatro anos de epilepsia nunca o Diogo sofrera um acidente. Sentia-me agoniada e temia pelo meu filho. Depois de ser devidamente examinado e de ter feito uma TAC saímos do hospital. Chegámos a casa de madrugada. Pouco falámos pelo caminho e, depois de deitar as crianças, concluímos que isto não era vida para o Diogo, teria mesmo de ser operado. Não dizem que “Deus escreve certo por linhas tortas?”. Não tenho dúvidas de que foi um sinal.
Algum tempo depois dava conhecimento do que sucedera à Dr.ª Manuela.

“Olá Dr.ª Manuela.
Já não lhe dava notícias há um tempinho... desculpe mas temos andado numa roda viva nas escolas.
No passado dia 17 de maio fomos com o Diogo à consulta de neurocirurgia, no hospital Francisco Xavier, com a Dr.ª Clara Romero. Informou-nos que a cirurgia desta vez será muito diferente da primeira. Vão colocar umas placas intra cranianas que irão localizar com mais precisão o foco e, quando forem removidas, este será extraído. Explicou-nos que o Diogo irá estar mais sujeito a complicações pois ficará mais tempo exposto e que será praticamente dada como certa a perda da visão no olho direito. Avisou-nos também que teríamos que ir a Lisboa fazer nova RM e que o Dr. Alberto, do Júlio de Matos, iria aprofundar o estudo da área envolvida. Foram notícias difíceis de assimilar... quando chegámos a Fafe o Diogo fez uma ausência acordado enquanto descia as escadas e acabamos o dia nas urgências do hospital de Guimarães. Teve que levar pontos numa orelha por tê-la rasgado na queda e fez uma TAC. Estava tudo bem, não fez qualquer traumatismo. Foi a primeira vez que o Diogo teve um acidente, em 4 anos de epilepsia. Desde então, tem feito crises predominantemente a dormir, apesar de ter tido uma ou outra acordado. O Diogo já tem consciência de que faz crises pois, depois de as fazer, diz-nos que tem dificuldade em respirar. Aproveitámos para explicar-lhe tudo sobre as crises, de uma maneira muito simples, de modo a que compreendesse o que se passava com ele e como deveria proteger-se.
Grata por tudo
Beijinhos,
Patrícia”

Admito que na viagem de regresso ponderei o que seria mais vantajoso para o meu filho, não fosse eu mãe, mas tive a resposta com a queda dele. A Dr.ª Manuela já nos vinha a preparar para todo este processo desde o início, por isso, ser-lhe-ei eternamente grata e mantenho a minha esperança de que o Diogo terá um dia o que merece, dentro do possível. Nós somos um poço de esperança e iremos onde for necessário pelo nosso filho. O Diogo também irá vencer pois, com sequela ou sem ela, nós estaremos cá para garantir que, dentro das suas limitações, será capaz de fazer o seu melhor.




quarta-feira, 8 de julho de 2015

Perdoa-me, mãe!


No rescaldo da cirurgia, ficámos desmoralizados e sentimo-nos frustrados. Aliás, foi assim que nos sentimos durante muito tempo. O pior foi começar a esconder o que sentíamos e a calar dentro de nós um enorme sentimento de frustração, nós já não funcionávamos como casal. Eu estava tão absorvida pelo trabalho que passara a ser a minha terapia… falava com os colegas sobre o Diogo, sobre o que se passara e como ficara abalada. Era o meu escape. O Filipe ficara para segundo plano, as necessidades do casal foram negligenciadas e os meus filhos absorviam-me quando estava em casa. O nosso casamento começava a acusar o cansaço e desgaste acumulado todos estes anos. Tínhamos apenas um denominador em comum – os nossos filhos.
O Diogo continuava com crises mas despertara para o mundo depois da cirurgia. Tornara-se mais sociável, mais conversador e andava muito bem-disposto. Superava as dificuldades ao seu ritmo, tinha consciência das suas dificuldades e aceitava a ajuda dos outros. O meu filho estava a crescer. 
A Laurinha era uma sardanisca muito malandra. Andava desde os oito meses e, desde então, não nos dava descanso. Depois de uma fase em que fazia otites superadas sucessivas, começou a fazer uma alimentação sem lactose, a pedido do especialista. Bebia leite, iogurtes, tudo sem lactose e as otites cessaram, pelo menos até ao inverno seguinte. Qual lactose, qual carapuça! Quando o Diogo foi chamado para a cirurgia, a Laurinha já ia na terceira otite sucessiva, fez a quarta enquanto estivemos em Lisboa. A minha mãe levou-a ao médico que receitou o quarto antibiótico… quando chegámos fez a quinta otite. Raio! Tanto antibiótico seguido só podia estar a diminuir as defesas do organismo da minha filhota. “Acabou, não toma mais antibiótico!” A verdade é que secou naturalmente o ouvido e, desde então, não fez mais otites. Começou a comer melhor e ganhou ainda mais defesas. Estava agora com dois anos e era o terror lá de casa.
Em janeiro, depois do segundo aniversário da Laurinha, trocava mails com a Dr.ª Manuela. O Diogo continuava com crises.
O ano de 2012 começara com uma única certeza, o Diogo voltaria a Lisboa para ser operado uma segunda vez. Os dias passavam a um ritmo lento. Eu assistia uma vez por semana à terapia ocupacional do Diogo, nas instalações da Cercifafe. Eram sessões muito úteis pois tinha a oportunidade de observar a Ana a trabalhar com o meu filho e vê-lo a corresponder na execução das tarefas. O Diogo começara a usar óculos aos três anos devido a astigmatismo combinado com hipermetropia. O estrabismo, que resultara da localização do foco epitalogénico, acentuava-se mais quando o Diogo descompensava em termos de crises mas era intermitente, isto é, afetava os dois olhos alternadamente. Esta intermitência era um bom sinal pois, caso não ocorresse, o olho tornar-se-ia preguiçoso e o meu filho corria o risco de ver o seu campo de visão diminuído. Apesar de tudo, ainda tinha alguma sorte do seu lado. 
A Laurinha desenvolvia-se muito rapidamente pois tinha um irmão mais velho que, inconscientemente, a estimulava constantemente. Gostava de ver os mesmos filmes e as mesmas séries de desenhos animados que conquistaram a predileção do mano mais velho. Brincava com carrinhos e só quando se cansava destes decidia pegar numa boneca à qual pintava a cara, a cabeça e despenteava artisticamente. Quando brincavam juntos faziam-se ouvir sem qualquer timidez.
Muitas foram as vezes que me surpreendi a pensar no amor que tinha pelos meus dois filhos. Recordei-me das inúmeras vezes que, em plena fase da adolescência, acusara a minha mãe “Tu gostas mais do meu irmão do que de mim!”. Será que um dia a minha filha me apontaria o dedo e diria o mesmo de mim? Essa possibilidade atormentava-me a alma, tal como atormentara a da minha mãe.
Quando eu e o meu irmão eramos ainda miúdos, tínhamos uma relação própria da diferença de idades e do facto de sermos de sexos opostos. O nosso passatempo preferido era implicar com o outro e eu, filha mais velha, era responsável por todas as malandrices que aquele pirralho fazia. O meu irmão era deveras irritante... Apercebi-me do quanto gostava dele quando adoeceu devido a uma bactéria que apanhara na piscina municipal e o atacara, deixando-o muito debilitado. A minha mãe chegou a pensar o pior. Agora passo pelo mesmo, como mãe. Naquela altura a minha mãe dizia-me amargurada pela minha acusação “Filha, um dia serás mãe e verás que é impossível gostar mais de um filho do que do outro”. Como a compreendo!

Perdoa-me, mãe!