No rescaldo da cirurgia, ficámos desmoralizados e sentimo-nos frustrados. Aliás, foi assim que nos sentimos durante muito tempo. O pior foi começar a esconder o que sentíamos e a calar dentro de nós um enorme sentimento de frustração, nós já não funcionávamos como casal. Eu estava tão absorvida pelo trabalho que passara a ser a minha terapia… falava com os colegas sobre o Diogo, sobre o que se passara e como ficara abalada. Era o meu escape. O Filipe ficara para segundo plano, as necessidades do casal foram negligenciadas e os meus filhos absorviam-me quando estava em casa. O nosso casamento começava a acusar o cansaço e desgaste acumulado todos estes anos. Tínhamos apenas um denominador em comum – os nossos filhos.
O Diogo continuava com crises mas despertara para o mundo
depois da cirurgia. Tornara-se mais sociável, mais conversador e andava muito
bem-disposto. Superava as dificuldades ao seu ritmo, tinha consciência das suas
dificuldades e aceitava a ajuda dos outros. O meu filho estava a crescer.
A
Laurinha era uma sardanisca muito malandra. Andava desde os oito meses e, desde
então, não nos dava descanso. Depois de uma fase em que fazia otites superadas
sucessivas, começou a fazer uma alimentação sem lactose, a pedido do
especialista. Bebia leite, iogurtes, tudo sem lactose e as otites cessaram,
pelo menos até ao inverno seguinte. Qual lactose, qual carapuça! Quando o Diogo
foi chamado para a cirurgia, a Laurinha já ia na terceira otite sucessiva, fez
a quarta enquanto estivemos em Lisboa. A minha mãe levou-a ao médico que
receitou o quarto antibiótico… quando chegámos fez a quinta otite. Raio! Tanto
antibiótico seguido só podia estar a diminuir as defesas do organismo da minha
filhota. “Acabou, não toma mais antibiótico!” A verdade é que secou
naturalmente o ouvido e, desde então, não fez mais otites. Começou a comer
melhor e ganhou ainda mais defesas. Estava agora com dois anos e era o terror
lá de casa.
Em janeiro, depois do segundo aniversário da Laurinha, trocava mails
com a Dr.ª Manuela. O Diogo continuava com crises.
O ano de 2012 começara com uma única certeza, o Diogo
voltaria a Lisboa para ser operado uma segunda vez. Os dias passavam a um ritmo
lento. Eu assistia uma vez por semana à terapia ocupacional do Diogo, nas
instalações da Cercifafe. Eram sessões muito úteis pois tinha a oportunidade de
observar a Ana a trabalhar com o meu filho e vê-lo a corresponder na execução
das tarefas. O Diogo começara a usar óculos aos três anos devido a astigmatismo
combinado com hipermetropia. O estrabismo, que resultara da localização do foco
epitalogénico, acentuava-se mais quando o Diogo descompensava em termos de
crises mas era intermitente, isto é, afetava os dois olhos alternadamente. Esta
intermitência era um bom sinal pois, caso não ocorresse, o olho tornar-se-ia
preguiçoso e o meu filho corria o risco de ver o seu campo de visão diminuído.
Apesar de tudo, ainda tinha alguma sorte do seu lado.
A Laurinha desenvolvia-se muito rapidamente pois tinha um
irmão mais velho que, inconscientemente, a estimulava constantemente. Gostava
de ver os mesmos filmes e as mesmas séries de desenhos animados que
conquistaram a predileção do mano mais velho. Brincava com carrinhos e só
quando se cansava destes decidia pegar numa boneca à qual pintava a cara, a
cabeça e despenteava artisticamente. Quando brincavam juntos faziam-se ouvir sem
qualquer timidez.
Muitas foram as vezes que me surpreendi a pensar no amor que
tinha pelos meus dois filhos. Recordei-me das inúmeras vezes que, em plena fase
da adolescência, acusara a minha mãe “Tu gostas mais do meu irmão do que de
mim!”. Será que um dia a minha filha me apontaria o dedo e diria o mesmo de
mim? Essa possibilidade atormentava-me a alma, tal como atormentara a da minha
mãe.
Quando eu e o meu irmão eramos ainda miúdos, tínhamos uma
relação própria da diferença de idades e do facto de sermos de sexos opostos. O
nosso passatempo preferido era implicar com o outro e eu, filha mais velha, era
responsável por todas as malandrices que aquele pirralho fazia. O meu irmão era
deveras irritante... Apercebi-me do quanto gostava dele quando adoeceu devido a
uma bactéria que apanhara na piscina municipal e o atacara, deixando-o muito
debilitado. A minha mãe chegou a pensar o pior. Agora passo pelo mesmo, como
mãe. Naquela altura a minha mãe dizia-me amargurada pela minha acusação “Filha,
um dia serás mãe e verás que é impossível gostar mais de um filho do que do
outro”. Como a compreendo!
Perdoa-me, mãe!
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