quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O meu Gigante


A minha existência tem sido brindada por experiências que, por um lado, me tornaram mais forte, e por outro lado, me permitiram ter uma visão da vida muito diferente daquela que sempre se idealiza ter. Se olhar para o passado, algo que faço com muita frequência, consigo interligar muitos acontecimentos como se de peças de um puzzle se tratassem - acontecimentos distantes no tempo mas detonadores de outros que se revelam cronologicamente mais tarde. 
Tinha apenas dez anos quando o meu avô Armando faleceu vítima de cancro no estômago. Assisti ao desenrolar da doença, acompanhei a minha avó Aida nos internamentos da sua alma gémea e pude despedir-me dele com um último beijo. Eu adorava o meu avô - éramos cúmplices - ele protegia-me e mimava-me e eu retribuía os afetos. Fui a primeira neta e, apesar de não fazer distinções entre os seus descendentes mais novos, tinha uma relação diferente com a neta mais velha. 
Sempre me senti privilegiada por ter partilhado mais tempo de vida com o meu avô pois aprendi muito com aquele gigante com coração de ouro. Imagino que tivesse os seus defeitos, como comum mortal, mas preservo a imagem da pessoa mais bondosa e carinhosa que conheci na minha vida. Era muito justo e amigo do seu amigo, até de desconhecidos. Recordo-me que o palacete, onde vivemos, era rodeado por jardins e as suas traseiras ficavam viradas para o campo de futebol do clube da Terra. Quando havia jogos, muitos procuravam o meu avô para poderem assistir aos jogos nos nossos jardins e o meu avô abria os portões e lá os deixava entrar. Eu acompanhava-o sempre e lembro-me de certo dia a procura ter sido maior do que era habitual. A invasão dos jardins do palacete era eminente e, por isso, os portões foram encerrados. Entre a multidão vislumbrei um senhor, de olhar triste e muito calado, e tive vontade de o fazer feliz, nem que fosse apenas pelo tempo de assistir a um jogo de futebol. Agarrei a mão do meu avô, apontei na direção do desconhecido e sussurrei um pedido ao seu ouvido. O avô sorriu para a neta e satisfez o seu desejo. O meu coração encheu-se de alegria e não foi o único.
Mais tarde, já os meus pais viviam num apartamento, muitas foram as vezes que troquei passeios com os meus progenitores para passar esse tempo com os meus avós e coitados se, a meio da noite, me lembrava de ir dormir ao palacete. Durante a semana, já a frequentar a escola primária, ia ter com o meu avô à sua oficina - ah, o meu gigante amoroso era mecânico de automóveis - para almoçar. Aos fins de semana passeávamos de mãos dadas e as mais ternas recordações do Natal têm a sua presença.
A perda do meu avô foi muito dolorosa. Ainda era muito nova para entender o significado da morte. Nessa mesma noite, na cama e com lágrimas a brotar dos olhos, pedi ao meu avô para ser o meu anjo da guarda. Assim "estaremos sempre juntos" e acrescentei "mas não te mostres porque tenho medo de fantasmas!".
Apesar de ter conhecimento da doença do meu avô querido, não me imaginava sem ele. Os últimos meses de vida foram marcados por brincadeiras, que guardo como momentos preciosos, e conversas que me marcaram e desencadeariam acontecimentos futuros. Numa dessas conversas, ouvi a confidência do meu gigante - "Sabes, Ticha, não irei ver-te a casar..." 
Fui ao funeral do meu avô, triste como a noite pois o meu gigante partira mas com um grande orgulho pois o seu corpo fora transportado num carro dos Bombeiros - ele também fora bombeiro voluntário - e pelo mar de pessoas que se quiseram despedir dele. Sinto tanto a tua falta!


     

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