Posso considerar-me uma mulher das ciências mas com fortes
convicções religiosas. A minha avó materna era uma senhora que acreditava
profundamente em Deus e na existência de uma vida para além da morte. Todos os
netos passaram os primeiros anos de vida sob a sua tutela e, assim sendo,
sujeitos aos seus primeiros ensinamentos.
Ainda me lembro de como me obrigava a
estudar a tabuada e como a cantava, sentada num cantinho do seu quarto, longe
do seu olhar. Já nessa idade dava os meus primeiros passos na aldrabice e
escrevinhava na palma da minha mão a cábula do número sete que tanto detestava.
Enquanto a minha avó costurava, numa máquina de pedal que a minha mãe ainda
possui, eu, neta arisca, cantava a tabuada recorrendo ao método mais primitivo
de auxiliar de memória. Nunca me chamou à atenção ou repreendeu… se alguma vez
desconfiou também não o denunciou. Tomara!… Obrigou-me a escrever tantas vezes
a dita tabuada na palma da mão que acabei por decorá-la!
Lembro-me também de
rezar o terço, à tarde, juntamente com o meu irmão e primos pois “… a virgem
Maria assim o pedira aos três pastorinhos”. E nós rezávamos… Hoje, mulher
feita, não rezo o terço, não consigo, mas acredito, tal como a minha avó, na existência de um
Deus misericordioso e numa vida do outro lado. Acredito profundamente que, mais
cedo ou mais tarde, todos nos encontraremos noutro lugar e que, enquanto tal
não acontece, eles, os que já não se encontram connosco, nos guardam.
A minha avó foi uma segunda mãe para mim.
As minhas primeiras recordações são com ela. Partilhámos confidências e
experiências, falávamos abertamente sobre qualquer tema, entre nós não existiam
tabus, enfim, éramos grandes amigas.
O vazio que a minha avó deixou nas nossas
vidas foi tremendo, afinal era a matriarca. Era o elo que nos unia, para além de
a considerar um poço de sabedoria. Em vida, transmitiu a todos os netos as suas
experiências, boas ou más, ensinou-nos história na primeira pessoa…
Eu costumo brincar quando, pelo facto de ser filha de
retornados, auto denomino-me refugiada. Pois,... os meus pais nasceram em Portugal
mas muito novos, ainda crianças de colo, partiram com os seus pais para Angola.
Lá cresceram, namoraram e casaram. Fizeram as suas vidas e eu nasci em 1973.
Dois anos mais tarde regressaram à metrópole com “uma mão à frente e outra
atrás”. As suas vidas tinham estado por um fio pois a família fora apanhada
numa emboscada. O que nos valeu foi o facto de um dos pretos da guerrilha ter
trabalhado com o meu avô e intercedeu por ele: “Este não! Este foi meu patrão e
tratava-nos bem, era nosso amigo!”
Cá chegámos, escorraçados da terra que nos vira crescer e que
ajudáramos a prosperar. O choque foi enorme, principalmente para a minha tia
Ilda que era a cassula e nascera por
terras africanas como eu. A família
dos meus avós deu-nos guarida e fomos viver para um palacete onde começámos
tudo do zero.
A minha avó contava histórias e, de um modo delicioso,
enquadrava-as em diferentes momentos da história mais recente do nosso país.
Falava do fascismo, da opressão vivida naqueles tempos que nos pareciam tão longínquos,
das perseguições… de como um meu tio-avô fora detido pela PIDE e falecera nos
calabouços da prisão. Ninguém, com excepção do meu avô Armando, apareceu no
funeral, tal era o receio de os identificarem como comunistas.
A minha avó
orgulhava-se das suas origens humildes, trabalhadoras, lutadoras e, acima de
tudo, de pessoas honradas. Davam muito valor à família e por ela tudo faziam. E
foi este o último pedido que fez às duas filhas quando sentiu que os seus dias
entre nós chegavam ao fim “Aconteça o que acontecer, mantenham-se unidas”.
Acabou por sucumbir no dia do aniversário da minha mãe.
Muito bonito Patrícia. Obrigada por esta partilhado. É interessante ver como a comunicação escrita ocupa um lugar tão diferente da comunicação oral. Soube mais de ti neste teu texto, escrito comovente o coração inteiro, do que durante o tempo que estiveste em Forjaes. .. e considerei-te uma boa comunicadora :-) . Escreves muito bom. Desejo o maior sucesso para o teu blogue. Beijinhos.
ResponderEliminarGosto tanto!
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