quinta-feira, 7 de maio de 2015

A marca da minha avó



Posso considerar-me uma mulher das ciências mas com fortes convicções religiosas. A minha avó materna era uma senhora que acreditava profundamente em Deus e na existência de uma vida para além da morte. Todos os netos passaram os primeiros anos de vida sob a sua tutela e, assim sendo, sujeitos aos seus primeiros ensinamentos. 
Ainda me lembro de como me obrigava a estudar a tabuada e como a cantava, sentada num cantinho do seu quarto, longe do seu olhar. Já nessa idade dava os meus primeiros passos na aldrabice e escrevinhava na palma da minha mão a cábula do número sete que tanto detestava. Enquanto a minha avó costurava, numa máquina de pedal que a minha mãe ainda possui, eu, neta arisca, cantava a tabuada recorrendo ao método mais primitivo de auxiliar de memória. Nunca me chamou à atenção ou repreendeu… se alguma vez desconfiou também não o denunciou. Tomara!… Obrigou-me a escrever tantas vezes a dita tabuada na palma da mão que acabei por decorá-la! 
Lembro-me também de rezar o terço, à tarde, juntamente com o meu irmão e primos pois “… a virgem Maria assim o pedira aos três pastorinhos”. E nós rezávamos… Hoje, mulher feita, não rezo o terço, não consigo, mas acredito, tal como a minha avó, na existência de um Deus misericordioso e numa vida do outro lado. Acredito profundamente que, mais cedo ou mais tarde, todos nos encontraremos noutro lugar e que, enquanto tal não acontece, eles, os que já não se encontram connosco, nos guardam. 
A minha avó foi uma segunda mãe para mim. As minhas primeiras recordações são com ela. Partilhámos confidências e experiências, falávamos abertamente sobre qualquer tema, entre nós não existiam tabus, enfim, éramos grandes amigas.  
O vazio que a minha avó deixou nas nossas vidas foi tremendo, afinal era a matriarca. Era o elo que nos unia, para além de a considerar um poço de sabedoria. Em vida, transmitiu a todos os netos as suas experiências, boas ou más, ensinou-nos história na primeira pessoa… 
Eu costumo brincar quando, pelo facto de ser filha de retornados, auto denomino-me refugiada. Pois,... os meus pais nasceram em Portugal mas muito novos, ainda crianças de colo, partiram com os seus pais para Angola. Lá cresceram, namoraram e casaram. Fizeram as suas vidas e eu nasci em 1973. Dois anos mais tarde regressaram à metrópole com “uma mão à frente e outra atrás”. As suas vidas tinham estado por um fio pois a família fora apanhada numa emboscada. O que nos valeu foi o facto de um dos pretos da guerrilha ter trabalhado com o meu avô e intercedeu por ele: “Este não! Este foi meu patrão e tratava-nos bem, era nosso amigo!”
Cá chegámos, escorraçados da terra que nos vira crescer e que ajudáramos a prosperar. O choque foi enorme, principalmente para a minha tia Ilda que era a cassula e nascera por terras africanas como eu. A família dos meus avós deu-nos guarida e fomos viver para um palacete onde começámos tudo do zero. 
A minha avó contava histórias e, de um modo delicioso, enquadrava-as em diferentes momentos da história mais recente do nosso país. Falava do fascismo, da opressão vivida naqueles tempos que nos pareciam tão longínquos, das perseguições… de como um meu tio-avô fora detido pela PIDE e falecera nos calabouços da prisão. Ninguém, com excepção do meu avô Armando, apareceu no funeral, tal era o receio de os identificarem como comunistas. 
A minha avó orgulhava-se das suas origens humildes, trabalhadoras, lutadoras e, acima de tudo, de pessoas honradas. Davam muito valor à família e por ela tudo faziam. E foi este o último pedido que fez às duas filhas quando sentiu que os seus dias entre nós chegavam ao fim “Aconteça o que acontecer, mantenham-se unidas”. Acabou por sucumbir no dia do aniversário da minha mãe.

2 comentários:

  1. Muito bonito Patrícia. Obrigada por esta partilhado. É interessante ver como a comunicação escrita ocupa um lugar tão diferente da comunicação oral. Soube mais de ti neste teu texto, escrito comovente o coração inteiro, do que durante o tempo que estiveste em Forjaes. .. e considerei-te uma boa comunicadora :-) . Escreves muito bom. Desejo o maior sucesso para o teu blogue. Beijinhos.

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