terça-feira, 12 de maio de 2015

Tempos turbulentos II



Vários amigos e colegas aconselharam-me a procura de uma segunda opinião. Eu sabia que era um direito do meu filho mas iria voltar à estaca zero. “Não! Vamos continuar com a Dr.ª Manuela!”. Eu sabia que era impossível obter respostas imediatas. O meu filho era refractário à medicação, logo teríamos de ter paciência, muita paciência… Foram experimentadas várias associações e as substâncias sucediam-se… fenitoína, vigabatrina, topiramato, carbamazepina, levetiracetam, lamotrigina, valproato de sódio… após inúmeras combinações e diferentes dosagens a que melhor controlava a epilepsia do Diogo era constituída por fenitoína, lamotrigina e clobazam. Este último pertencente a um grupo de medicamentos denominado de benzodiazepinas e que funciona por causar um efeito calmante no cérebro.
Com o passar do tempo, o Diogo deixou de ter crises acordado e passou a tê-las apenas durante o sono. Brindava-nos sempre com uma ou duas crises ao adormecer, umas quantas durante o sono e outra ao despertar. E nós nada podíamos fazer, apenas observar, registar e contabilizar. Rapidamente aprendemos a colocar as emoções de lado e a manter a frieza necessária para podermos ajudar o nosso filho. Enviávamos relatórios semanais à Dr.ª Manuela via e-mail que, assim, acompanhava o desenrolar da epilepsia, a resposta aos diferentes fármacos, mudava as dosagens e respondia às nossas dúvidas, para além de nos convocar a novas idas ao Maria Pia. Quando as crises se alteravam também partilhávamos pequenos filmes das mesmas, assim foi com as crises provocadas pelo “maldito Keppra!”.
Eu e o meu marido sentíamo-nos impotentes, não podíamos fazer nada para ajudar o nosso filho e descarregávamos a nossa raiva no outro. Em determinadas alturas quase disputávamos para descobrir qual de nós lhe dava melhor assistência. “Não faças assim… não vês que desta forma é melhor?”. Até na preparação da hedionda mistura discutíamos o método mais rápido de a fazer ou a medição mais precisa dos fármacos a misturar. Era indiferente se, eu ou ele, triturávamos os comprimidos para a esquerda ou para a direita… o importante era dá-los à hora certa. Como dizem “o tempo ensina-nos” e nós acabámos por aprender a lidar com as nossas frustrações e a conjugar esforços para que o Diogo tivesse uma vida normal, apesar das nossas vidas terem deixado de sê-lo.
A medicação do Diogo passou a fazer parte do nosso dia-a-dia: duas tomas, às 9 da manhã e às 21 horas. Fazíamo-nos acompanhar sempre do malote da medicação que incluía os fármacos, um almofariz para triturar os comprimidos dispersíveis, uma garrafa de xarope caseiro que preparávamos, misturando água e açúcar até atingir a viscosidade pretendida, e uma seringa para administrar oralmente a intragável mistura. Era mesmo hedionda! Como sei? Sempre que dávamos nova medicação ao Diogo experimentávamos para prever a sua reação e os sabores eram ácidos, amargos de provar, e prevaleciam no palato por muito tempo, de tal modo que, após as tomas, o Diogo era sempre presenteado com um rebuçado.
Nunca escondi a epilepsia do Diogo a ninguém. Falei sempre abertamente e prevenia quem estivesse comigo que ele fazia crises, descrevia-as e antecipava o momento do choque em que o meu filho brindava os presentes com as suas ausências. Apesar de falar, sentia uma revolta imensa que se apoderara de mim. Porquê o meu filho? Porquê? Que mal terá feito para merecer tamanho castigo? Vivia com o coração nas mãos pois não sabia se as crises lhe causariam algum tipo de lesão e sabia que aquilo não era vida nem para ele, nem para ninguém. Eu tornara-me a sombra do Diogo pois as crises aconteciam sem aviso prévio. Bastava uma queda mal dada, uma corrida inofensiva, no fim da qual o Diogo se transformava num projétil e voava, aquelas pequenas coisas inofensivas que estão sempre presentes mas que potenciam os riscos no caso dele. O Diogo nunca mais esteve sozinho numa divisão da nossa casa pois tinha-nos sempre ao seu lado ou muito próximos. 
O mês de agosto passou tempestuosamente, seguiu-se setembro e fiquei colocada em Pevidém, Guimarães. Os dias passavam lentamente e tínhamos a sensação de viver um pesadelo do qual não conseguíamos despertar. 
A partir de outubro as crises foram tornando-se menos frequentes até cessarem. E não se repetiram durante 6 meses. Respirávamos de alívio mas não demos tréguas à vigilância. O Diogo tinha ganho liberdade de movimentos mas o nosso olhar estava sempre nele. Ora eu, ora o pai, já nem precisávamos de combinar quem o vigiaria… bastava um virar costas e o outro imediatamente se posicionaria. 
Entre nós, questionávamo-nos se a epilepsia teria desaparecido tão subitamente conforme aparecera. Mas lá no fundo, bem no fundo, sabíamos que estava apenas a dormir. Passados uns meses houve um surto de varicela no infantário e o Diogo, apesar de resistente, foi o último da sala a manifestá-la. Ficou com o corpo todo sarapintado. Eram tantas as erupções que eu vertia o betadine diretamente pelo corpo e espalhava-o com um punhado de algodão. A epilepsia também voltou e, deste então, nunca mais deu tréguas. 
O Diogo era uma criança que descansava muito pouco pois tinha crises durante o sono. Enquanto dormimos, o nosso organismo relaxa mas o do meu filho entrava em convulsão, de tal forma que o despertar era sempre tempestuoso. Acordava maldisposto, resmungão e muito embirrento. Era uma tortura preparar o rapaz e levá-lo para o infantário onde ficava amuado. Por vezes demorava cerca de uma hora a vestir-se. 
À medida que ia crescendo e aumentando de peso era reajustada a medicação e, entre consultas, indicávamos as dificuldades que iam sendo detetadas. Apercebemo-nos que o nosso filho não gostava de jogos de encaixes ou de puzzles. Não rodava as peças de modo a encaixá-las corretamente e, enfurecido e frustrado, afastava os jogos. Tinha dificuldade em acabar qualquer tarefa, por mais simples que fosse, e não gostava de desenhar ou pintar. A Dr.ª Manuela explicou-nos que seriam consequências da localização do foco epitalogénico e a motricidade fina seria uma preocupação no futuro muito próximo. Pouco tempo depois fez-se uma primeira avaliação de desempenho sendo o nosso filho muito pouco colaborante. Durante 6 semanas, todas as sextas feiras, deslocávamo-nos ao Maria Pia. A maioria das vezes o regresso era feito sem qualquer tarefa desempenhada pelo Diogo e o resultado final foi alarmante apesar de espectável. Não perdi tempo e falei com a Isabel. Expliquei os resultados obtidos e pedi que sinalizasse o Diogo de modo a que lhe fosse facultada terapia ocupacional. 
Depois de tudo ter começado e ter voltado à escola apercebi-me pela primeira vez de que a epilepsia era uma doença que afetava muitos dos que me rodeavam ou alguém que conheciam. “Sabes, fulano também tem mas toma medicação e não faz crises…”, “Eu já tive ataques em miúdo mas acabou por passar…”. Mas por que razão o escondiam? Foi o meu primeiro contacto com o preconceito. As pessoas que têm epilepsia não gostam de dizer que a têm ou sequer que já a tiveram. Na antiguidade seriam apontadas como pessoas possuídas pelo diabo, padeceriam nas fogueiras da Santa Inquisição na Era da caça às bruxas e, hoje, continuam a ser vistas de modo diferente, são os epiléticos. E o meu filho pertence a este clube.

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