domingo, 10 de maio de 2015

Tempos turbulentos



Durante o fim-de-semana informaram-nos dos contactos que mantinham com o hospital São Marcos, em Braga, e o hospital Maria Pia, no Porto, e que estariam a seguir as suas instruções pois a epilepsia do Diogo era muito complicada. Na segunda-feira, logo pela manhã, avisaram-nos de que o Maria Pia queria a transferência do Diogo, após realização de uma ressonância magnética. “Não pode fazê-la lá, senhora doutora?”. A médica foi apanhada desprevenida pela minha pergunta e eu apercebi-me imediatamente… “Desculpe, não me interprete mal. Eu sei que aqui não conseguem dar respostas ao nosso filho e eu quero que ele esteja onde lhas possam dar. Se é no Maria Pia, é para lá que eu quero que ele vá, o mais rápido possível.”
Após um internamento de 5 dias em Guimarães e feito o recobro da RM, o Diogo foi transferido para o Maria Pia. O meu marido seguiu atrás da ambulância. Pelo caminho viveu-se um ambiente de muita tensão pois o meu filho ficou muito agitado e disparava crises a torto e a direito. O bombeiro, condutor da ambulância, esgalhou na autoestrada com a sirene sempre a bombar e eu só via os carros a encostar rapidamente na faixa direita. “Meu Deus, isto parece um filme” pensei eu.
Chegámos ao Maria Pia. Esperavam-nos duas médicas que acompanharam o caso do Diogo à distância, a Dr.ª Manuela Santos e a Dr.ª Inês Carrilho. Fizeram-nos imensas questões e pediram-nos os filmes de que já tinham conhecimento. E alí ficámos, eu e o meu marido, a observar e a tentar apanhar algo na conversa, entre as duas especialistas, que nos permitisse obter mais alguma informação. O modo como discutiam o caso transmitiu-me segurança e senti-me melhor, apesar de tudo. O Diogo também as brindou com crises, o que lhes permitiu chegar a um consenso mais rapidamente. Enquanto subíamos para o internamento, a Dr.ª Manuela Santos explicou-nos o que pretendiam fazer: seria administrada fenitoína (Hidantina) endovenosa durante a noite. Na manhã seguinte esperavam resultados. A verdade é que chorei toda a noite, não sei se de medo ou de alívio e o Diogo dormiu como um anjo. Nenhuma crise a assinalar. A resposta era muito boa mas não seria duradoura. Tirou-se a fenitoína endovenosa e começámos a dar a medicação via oral, diluída em xarope. Passado algumas horas reparei que o Diogo começava a dar uns esticões com um braço, tipo soluços, e informei a enfermeira. No fim do dia a Dr.ª Manuela disse-nos que seriam indícios de que as crises voltariam e voltaram. O que a seguir nos explicaram pareceu-nos suficiente para a altura. O Diogo tinha uma epilepsia de difícil controlo cuja causa ainda não estaria identificada pois a RM, apesar de exaustiva, não mostrava qualquer malformação cerebral. Continuava por descobrir a associação de fármacos que permitiria o controlo das crises do Diogo que, entretanto ficara conhecido pelo “menino das cinquenta…” crises diárias. Sim, parece mentira mas é verdade! O meu filho fazia uma média de 50 a 60 crises por dia.
A nossa estadia no Maria Pia abriu-me os olhos para uma realidade muito triste. Apercebi-me que vivia numa absoluta ignorância, que tinha uma vida tão ridiculamente perfeita que me passava ao lado o sofrimento vivido por tantas mulheres. Conheci muitas mães, umas com uma vasta experiência na dor, outras principiantes como eu. Partilhávamos as histórias das nossas crias, de como tudo começou e os nossos medos. Conheci muitas mães que me mostraram, pelas suas experiências de vida, o que queria e o que não queria para o Diogo. Com essas aprendizagens esbocei desde cedo o caminho que queria trilhar e aqueles que teria de evitar para o bem do meu filho.
Apesar de me encontrar enclausurada com o Diogo tive oportunidade de conhecer profissionais de saúde espetaculares que adoravam crianças, que lhes proporcionavam momentos bons, na prisão das suas camas, e davam o ânimo e apoio possíveis aos pais atormentados. Eram pessoas que tinham o dom da dádiva, da entrega àqueles seres em sofrimento. Uma dessas pessoas que marcou este meu percurso inicial foi uma enfermeira, já de idade que cantarolava e contava piadas enquanto dava a medicação. Sou sincera, já não me lembro do seu nome mas nunca esqueci o livro que me emprestou para sossegar o meu coração “Leia, vai compreender melhor a epilepsia e obter algumas respostas que ainda não ousou fazer”. Li-o nessa noite.
Conheço as paredes do Maria Pia como as palmas das minhas mãos. Tendo sido um hospital de fim de linha para casos pediátricos, as suas paredes encontravam-se pintadas para as crianças. Como o Diogo não parava sossegado, passeava com ele ao colo e mostrava-lhe os desenhos. A determinada altura comecei a inventar histórias com as personagens representadas e, quando estas já não o satisfaziam, contávamos as abelhinhas, as joaninhas, os grilos, as nuvens… chegava ao fim do dia exausta e a precisar de um banho que improvisava na casa de banho de serviço com o auxílio de uma bacia facultada pelas enfermeiras. Mudava de roupa e deitava-me ao lado do Diogo. Regra geral, as mães dormiam nos cadeirões mas, como era pequenino e fazia crises durante a noite, autorizaram a partilha da cama. Foram 13 dias e 13 noites sem descanso no Maria Pia. Durante esse período de tempo eduquei o meu sono, deixei de dormir como até então. Ao mínimo movimento ou gemido lá estava eu, debruçada sobre o meu filho, a observá-lo. Depois assinalava numa folha de papel a hora, duração e descrição da crise.
Depois de alguns eletroencefalogramas (EEG), muitas picadas nas veias para medição de níveis dos fármacos no sangue e uma ligeira diminuição das crises, a Dr.ª Manuela veio falar connosco. Disse-nos que o Diogo teria alta no dia seguinte pois, apesar de não estar controlado, o alargamento do internamento poderia ser-lhe prejudicial. Disse-nos também que não podia continuar a acompanhar o Diogo pois tinha muitos outros casos, também eles muito difíceis. Foi visível o meu desalento. Aquela notícia abalou-me muito pois tinha a certeza de que a Dr.ª Manuela era a pessoa certa para o meu filho. Na manhã seguinte, voltou a visitar-nos antes de dar a alta. Indicou-nos a medicação que o Diogo faria em casa, explicou as diferentes dosagens e disse “Sempre vou ficar com o Diogo! Mas este menino está proibido de regredir. Estimulem-no, não parem de o estimular”. Fiquei muito feliz e muito mais tranquila. E até hoje continua com o meu filho e eu continuo com a certeza de que é a pessoa certa para ele.
Regressámos a casa. O Diogo continuou a fazer crises, cerca de 40 diariamente. No final de cada dia deslocávamo-nos ao Maria Pia para verificar os níveis dos fármacos no seu sangue e andávamos exaustos. Eram 180 km diários. Entretanto associou-se levetiracetam (conhecido por Keppra) à fenitoína e a resposta do Diogo foi bombástica nesse fim-de-semana. As crises intensificaram e tornaram-se mais violentas. Os números dispararam e o Diogo tornara-se agressivo. No final de cada crise agredia quem encontrasse à sua frente. Filmámos as crises, enviámos por e-mail à Dr.ª Manuela e seguiu-se um novo internamento, o segundo. Pouco depois de termos dado entrada no Maria Pia, a Dr.ª Manuela dirigiu-se a nós e alertou-nos que a epilepsia do Diogo era muito difícil de controlar e que provavelmente só se resolveria com uma cirurgia. Nesse momento perdi o chão, entrei em desespero… afastei-me enquanto o Filipe ficou com o nosso filho e entrei num choro convulsivo. Com os olhos inchados e a arder, sequei o meu rosto, respirei fundo e fui ter com eles. Não voltei a verter lágrimas pois sentia-me seca.
Fez-se o desmame do levetiracetam e introduziu-se o valproato de sódio (conhecido por Depakine). As crises atenuaram e, passada uma semana, regressámos novamente a casa, com a certeza de que voltaríamos para fazer uma série de exames desde punção lombar, despistes a doenças raras e super raras, eletroencefalograma e PET (Tomografia por Emissão de Positrões), este último teria de ter o consentimento da direção do hospital por ser muito dispendioso e só ser feito em casos extremos. As crises do Diogo inicialmente pareciam ser frontais mas existia uma dúvida que não era evidente nas EEG: algo parecia indicar uma origem occipital, seguida de uma propagação frontal muito rápida e essa dúvida só poderia ser esclarecida pela realização da PET.

A Tomografia por Emissão de Positrões (PET) é uma técnica de imagem médica que utiliza moléculas que incluem um componente radioativo. Quando administradas no corpo humano estas moléculas podem ser utilizadas para detetar e localizar reações bioquímicas associadas a determinadas doenças, nomeadamente nas áreas da oncologia, da cardiologia e da neurologia.
Trata-se de um exame cujo resultado pode ser determinante na orientação do diagnóstico bem como na instituição e programação terapêutica. O radio fármaco utilizado é um derivado da glicose, a Fluordesoxiglicose marcada pelo Flúor-18 (abreviada como 18F-FDG). O doente é injetado com uma pequena concentração de glicose radioativa numa veia periférica - a glicose é um dos combustíveis usados pela célula para obter energia. Este “combustível” marcado vai concentrar-se nas zonas do corpo com mais gasto energético. Várias doenças podem afetar o consumo energético das células. Por exemplo, em algumas doenças neurológicas, certas áreas do cérebro tornam-se menos ativas, consumindo menos glicose, o que pode ser detetado no aparelho. Da mesma maneira, em alguns tumores, observa-se alto consumo de glicose.

À esquerda, a seta vermelha mostra a área menos ativa (imagem de cérebro) e, à direita, seta verde mostra um tumor na parte superior do pulmão esquerdo (área mais ativa).

Após um período de espera, de cerca de 1 hora, para a distribuição e captação do radionuclídeo, o doente é posicionado confortavelmente no equipamento. Os exames de PET permitem a obtenção de imagens tridimensionais da distribuição das moléculas marcadas, com componentes radioactivos, no corpo humano. As moléculas marcadas são como sinais fluorescentes e quando o doente é colocado num detetor de radiação (o tomógrafo ou PET Scan) as zonas mais ativas do organismo surgem como pontos luminosos. A captação de imagens dura entre 25-35 minutos.

Quando foi obtido o consentimento voltámos ao Maria Pia por mais quatro 4 dias. Estávamos em julho e tínhamos apenas uma certeza, a epilepsia do Diogo era parieto-occipital, como se desconfiava, tendo sido alterada a terapêutica com introdução da lamotrigina. Durante este terceiro internamento conheci uma mãe que me mostrou o caminho que eu não queria seguir com o Diogo. O filho tinha uns 12 anos mas a maturidade dele não correspondia à sua idade. Frequentava o ensino primário e contava já com duas retenções. Desde que fora diagnosticada epilepsia ao filho deixara de fazer férias, nem sequer o levava à praia. Pois o Diogo foi em agosto com a família toda para Albufeira, pais, avós, tios e primas. Todos queriam ajudar. Passávamos o dia na praia de St.ª Eulália. Chegávamos de manhã e o Diogo corria pelo areal e fazia as suas construções na areia. O pai carregava baldes de água que o filho não tinha problema em rapidamente despejar. Depois do almoço, enchíamos uma pequena piscina insuflável com pouca água, mas a suficiente, que ficava ao sol durante o período da sesta, para posterior deleite do nosso filho. E as crises continuavam a ser contabilizadas e eram presenciadas por todos.
Entre internamentos tentávamos seguir as nossas vidas com a normalidade possível. As rotinas diárias mantinham-se. O Diogo voltou para o infantário acompanhado de um livrinho no qual a Isabel, educadora do Diogo, registava as crises do meu menino. Expliquei à Isabel tudo sobre a epilepsia do Diogo: como se manifestavam as crises, como deveria proceder e o que deveria registar no livrinho, isto é, o que tinha desencadeado a crise, hora, duração e descrição da mesma. Pedi que mantivesse a mesma atitude, que não o diferenciasse das outras crianças, pois ele tinha que prosseguir com uma vida completamente normal. Deixei-a com os olhos embargados em lágrimas.
Enquanto dormia a sesta, depois do almoço, tinha a Isabel ou a Olga ao seu lado para vigiar o sono. As crises eram silenciosas, por isso, sempre que se virava obrigava a sua vigilante a mudar de posição. Nunca terei como agradecer a dedicação destas duas mulheres ao meu filho. Eu sabia que durante o dia estava em boas mãos.
Retomei as aulas e trabalhei as dificuldades dos meus alunos adequando estratégias que eram aplicadas individualmente. Resumindo, entupi-me de trabalho. Apesar de exausta, encontrava na escola a paz que desejava para a minha vida. O trabalho era a minha terapia e o modo de conseguir preservar a minha sanidade mental. Enquanto estava em Celorico abstraia-me da minha realidade que me era tão penosa. Tinha entrado para um grupo restrito de mães cujos filhos não vêm descritos nos livros. Um grupo tão restrito e fechado que me sufocava e eu tinha necessidade de falar!... 

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